Wednesday, May 16, 2007

...das identidades... (take #1)

Trabalhar sobre performance é trabalhar sobre o tempo: sobre a memória do passado e o sonho do futuro.

Trabalhar sobre o tempo, como no acto performático, é trabalhar sobre processos e, por conseguinte, dinâmicas instáveis e voláteis – baseadas na experiência, e assim sendo, diferindo de indivíduo para indivíduo: tanto a sua execução, como a sua compreensão.

Enquanto português, enquanto criança criada em Portugal, sempre ouvi falar do fado, de histórias antigas do tempo dos reis, da importância da história, dos défices culturais e económicos, de problemas políticos, de revoluções, de tentativas de melhoria, de esperança e de saudade.

Todos estes temas me viriam à cabeça num país estrangeiro, se me perguntassem como é ser português…

Em Portugal, trabalhar sobre performance (que é trabalhar sobre o tempo), fazê-la; é trabalhar sobre a maneira de um povo, uma cultura, encarar o tempo, é manipular o tempo usando ferramentas conceptuais de uma dada cultura: a portuguesa.

Assim sendo, se me perguntassem num pais estrangeiro como é ser português, diria tudo o que disse, mas ficaria provavelmente empancado nas palavras esperança e saudade.

Para mim ser português é ter saudades de um tempo que já se foi, e no qual a vida foi melhor do que é hoje, e ter esperança que no futuro volte a sê-lo.

Pelo menos é assim que o filósofo português Eduardo Lourenço define o ser português, define a sua relação com a temporalidade: ser português é fugir a sete pés de um tempo finito, é procurar um tempo absoluto e “mítico destituído de toda a ansiedade e (…) devir, [é tentar] transpor as limitações temporais, e a transitoriedade das coisas”, é fixar o tempo e ultrapassar a mortalidade: ser português é viver com e nas memórias. (M. Rocha, 2005:150)

Como será então expressa esta identidade tão própria, esta “maneira de «sentir» nacional”, em peças artísticas; no contexto de uma cultura que se crê hoje desenvolvida por comparação com outras culturas e, por isso mesmo, menos característica e mais global? (Castro, 1940:19).

Tomei, em 2005, contacto com o conceito de performance, partindo de um ponto de vista que nada tinha a ver com o conceito de performance numa visão clássica antropológica (ou pelo menos assim parecia). Sendo desde sempre apreciador do mundo das artes e dos seus objectos, nunca me tinha ocorrido que se fizesse uso do acto (num sentido geral) para fazer arte, ou melhor, nunca tinha concebido o próprio gesto como arte.

A fascinação por uma carga simbólica imensa contida nas apresentações públicas – uma espécie de substituição do significado de um signo por um outro análogo (mais adiante definido como re-centramento) –, leva ao início de um processo de pesquisa sobre o universo da componente performática (gesto com intenção) de diversas áreas artísticas; nomeadamente performance (território sincrético), teatro e dança.

Tendo, em diferentes trabalhos académicos, explorado diferentes áreas do campo antropológico – espaço, performance antropológica, interacção social, ritual, etc. (adiante referidas por vias de uma contextualização que assim o exige) –, vi-me encurralado num tema para mim algo complexo, e desconfortável: o tempo.

Começa por ser desconfortável porque, tal como o território da performance, é de uma circunscrição demasiado forçada e artificial – talvez como qualquer circunscrição na feitura de uma antropologia séria – mas neste caso, descaradamente artificial. A sistematização torna-se uma ferramenta indispensável; porém, altamente questionável.

Por outro lado, trabalhar sobre o universo português (da criação artística feita por portugueses), é trabalhar também sobre a minha própria maneira de, socialmente, encarar a minha própria temporalidade, a minha própria vontade (mais ou menos consciente) de parar o tempo, de me deparar com a minha finitude temporal e carnal, com a maneira como o povo Português (no qual me incluo) se reinventa e se mítifica, com base na saudade de um passado, e se projecta no sonho de um futuro que remonta à noção de regresso: como que deambulando num universo de nostalgia e esperança simultâneas.

Assim, e neste momento, trabalhar sobre performance, que é trabalhar sobre tempo, e trabalhar sobre performance em Portugal, que é trabalhar sobre a maneira de viver a temporalidade de uma cultura especifica, prende-se essencialmente com uma tentativa de perceber até que ponto esta maneira de viver o tempo, teorizada por Eduardo Lourenço, influi na produção de objectos num campo que hoje se crê, por vezes moribundo, por outras com revigorada força: o artístico.

Tento, então, analisando trabalhos de décadas anteriores da contemporaneidade, perceber se existe uma qualquer linha de orientação, ou eixo organizativo (ainda que não primordialmente considerado como tal) que, desde o final dos anos 70 até hoje, revele de alguma maneira, mais ou menos propositada, esta forma de trabalhar o tempo – esta identidade cultural que se baseia, mais do que num espaço, num tempo que se quer mítico, sem ansiedades e estático – embora a bem da correcção se devesse dizer: sem presente.

G. W. F. Hegel disse, “a arte tem de proceder de tal modo que em todos os pontos da sua superfície fenomenal seja o olhar, sede da alma que torna visível o espírito” (Hegel, 1964:8).

Até que ponto será então verdadeira, ou exequível, esta premissa? Até que ponto poderá uma obra de arte, um objecto artístico, espelhar uma alma, uma identidade, um povo? E a fazê-lo, será que o faz num campo representativo ou de representação?

Tomando em linha de conta os autores G. Hegel e Verónica Metelo, e os articularmos, poderia dizer-se que sim – não só é possível, como o faz num campo sub-representativo (conceito forjado por Verónica Metelo, cuja definição assenta na intensidade da experiência de um determinado fenómeno artístico, sendo que esta é atingida por articulação com outros fenómenos artísticos circundantes, contemporâneos), contudo ela fá-lo-á individualmente; ou seja, cada individuo ao experienciar o fenómeno artístico atribuir-lhe-á um grau de intensidade, sendo que esse é, mais ou menos, determinado socialmente – pela sensibilidade estética de determinada cultura.

O caso português contemporâneo, à priori, parece ter sido construído com base em algumas premissas teóricas de Hegel, aquando da redacção do seu Belo Artístico ou Ideal. O autor refere: “é missão da arte apreender a existência e apresentá-la como verídica nas suas manifestações fenomenais”, ou seja, não se tratará de uma “exactidão pura e simples a que se reduz a chamada imitação da natureza; para ser verdadeira, deve a arte realizar o acordo entre o exterior e o interior”; resultando finalmente naquilo que ambos os autores supracitados definem como revelação. (Hegel, 1964: 11)

Daqui são forjados dois conceitos diferentes: Hegel apresenta o conceito de ideal, e Verónica Metelo o de processo negativo de revelação de uma positividade. Embora formalmente diferentes, estes conceitos parecem-me sugerir a mesma realidade: a exploração de uma determinada realidade, para que a sua transformação por parte do individuo (na experiência), resulte numa supra-realidade, mais verdadeira que a própria de modo a ser mais facilmente aceite como tal (real) pelo individuo espectador. Possível também será a utilização destes conceitos para definir a abertura de determinado objecto, ou facto artístico, a novas significações. (Metelo, 2007: - )

Tendo em conta o que se escreve sobre a arte portuguesa contemporânea (na sua generalidade), pode-se dizer que este é o processo magistral de fazer arte a partir de uma determinada data, nomeadamente a partir de meados da década de 60, vulgo período Modernista.

Hegel escreve ainda: “a subjectividade individual [característica das obras de arte] acha-se situada naquele ponto central onde a substancialidade do conteúdo, em vez de se exteriorizar na forma (…), se encerra na individualidade”, Contudo, “o ideal se não pode coibir de transpor as fronteiras do sensível”, uma vez que “a arte tem o poder de restabelecer o aparelho de que esse mundo exterior carece para assegurar a sua persistência nos limites dentro dos quais a manifestação exterior surge como liberdade espiritual”, acrescentando ao citar Schiller: “a vida tem seriedade, a arte tem serenidade” [itálico do autor] (Hegel, 1964:13-15)

Estas afirmações, tal como a anterior, parecem predizer a produção artística portuguesa moderna e pós moderna. Desta feita, se seguirmos as premissas de Hegel em conjunto com Eduardo Lourenço, ou Michelle Rocha, afirmaremos (por articulação) que a arte portuguesa contemporânea reflecte a sua memória colectiva no que se relaciona com a temporalidade e a sua vivência. Ou seja, tal como Michelle Rocha define a pintura de António Dacosta, no seu artigo António Dacosta – A procura de um tempo mítico, também a arte portuguesa contemporânea pode definir-se por uma carga individual bastante forte e que, a reflectir uma memória, será a do criador. Porém, a autora define também a pintura de Dacosta (a partir dos seus temas formais) como uma procura de um tempo mítico, sem ansiedade e sem devir – a mesma definição que Eduardo Lourenço apresenta para a base da memória colectiva portuguesa: a saudade e o eterno retorno, que caracterizam um povo cujo objectivo é parar o tempo – desafiar a sua mortalidade, mais do que física, cultural. Assim, podemos declarar uma arte de carácter individual, contudo influenciada (como todas) por um contexto social, cultural, económico, politico, religioso, etc., e que (no caso especifico português) tenta alcançar a serenidade referida por Hegel – criar realidades tão reais como as que lhe servem de matéria prima, mas de carácter estático, manipuláveis do ponto de vista da temporalidade, jogando sempre entre um passado e um futuro que não se definem, e que se entrecruzam.

Contudo, a tendência natural deste fenómeno social da tentativa de abolição do irremediável passar do tempo parece, actualmente, procurar novas formas/ferramentas para atingir esse fim – o que pode levantar também a questão: será este ainda o fim que se pretende alcançar?

Em 1940, foi organizada em Lisboa (espaço circundante ao Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém), a Exposição do Mundo Português, que visava relatar a história do país desde a sua fundação até à data da própria exposição. Este relato, porém, padecia de uma certa falta de objectividade, e obedecia (por força de circunstâncias políticas nacionais e internacionais) a um preceito de enfatização heróica do povo português e de acontecimentos pontuais da história portuguesa – fundação, Descobrimentos, processo de colonização, missões de evangelização, etc. (Castro, 1940:22) – todos eles apresentados de um ponto de vista extremamente manipulado e parcial.

Esta questão parece-me, não obstante a sua relevância e referencia, arrumada – basta pensarmos no processo da própria antropologia: a selecção de um objecto e sua circunscrição são já uma manipulação da realidade.

Porém, o que me parece mais relevante é o ponto de vista escolhido: o heróico. Será este o tom das peças artísticas criadas actualmente? Será esta a motivação: o reviver eterno de um passado que se sabe não voltar, mas cuja certeza de uma circularidade da história não abala a fé, de um povo, de que o passado regresse na forma de um futuro que reúna as características da sua anterior glória?

Será esta a motivação de uma geração artística que substituiu a edificação heróica e mítificada de um povo, pela destruição, pela desconstrução e pela ironia?

Hegel disse da ironia: “(…) a ironia implica aquela negatividade absoluta na qual o sujeito, ao destruir tudo o que tem uma determinação precisa e unilateral, se refere a si mesmo." (Hegel, 1964:19)

No caso português, esta afirmação é aplicada se tivermos em linha de conta que o que o confina e determina é a sua temporalidade – física e cultural. Nesta linha de pensamento, seria plausível afirmar então que as peças artísticas portuguesas, da geração que agora as produz, utilizam o ironia e a destruição como ferramentas para o mesmo fim que anteriormente foram utilizados o mito e a heroificação.

Porém, se à citação anterior associarmos outra: “(...) a ironia torna-se uma arte de destruição universal e leva (...) a uma inconsistência que nada tem de artístico e nenhuma relação possui com o verdadeiro ideal." (Hegel, 1964:19); e se tivermos em linha de conta que se trata de uma geração de herança teórica eminentemente Duchamp’iana, podemos então afirmar que actualmente se tratam de peças artísticas anti-arte, e que o seu fim já não é parar o tempo de determinada maneira, ou em determinado ponto; é pará-lo de qualquer maneira, em qualquer ponto, porque a partir de qualquer ponto será possível combater o esquecimento. E a afirmação de Hegel “"(...) a ironia torna-se uma arte de destruição universal (…) que nada tem de artístico” (Hegel, 1964:19), apesar de ter um fundo de alguma verdade, especialmente se tivermos em conta a produção artística sua contemporânea (segunda metade do século XIX), pode ser refutada pela de Duchamp: “a arte pode ser má, boa ou indiferente mas, qualquer que seja o adjectivo usado, temos de lhe chamar arte e uma arte má continua a ser arte, tanto quanto uma má emoção não deixa de ser uma emoção.” (Duchamp, 1997:4).

Será esta então uma geração que, por reforço negativo ou herança teórica, se rebelou contra a memória colectiva nacional e sem conseguir abandoná-la decidiu desdizê-la? E se o faz, como o faz? E porquê?

“O homem destroçado pelo destino poderá perder a sua vida, mas não a liberdade. É esta confiança em si que lhe permite, na dor, manter e pôr à prova a calma e a serenidade.” (Hegel, 1964:16)