Monday, June 30, 2008

...das identidades (take #32) Standing Ovation (2ª parte)

Um homem apresenta-se perante um público usando vestuário masculino. Ao som de música electrónica despe-se, e volta a vestir-se. Deste feita envergando um vestido curto, collants, saltos altos e uma farta peruca loira. Standing ovation.
Um homem vestido de cor-de-laranja é fotografado. O seu fato é composto inteiramente por panos do pó. A fotografia é captada num dos lugares emblemáticos do país. Portugal dos Pequeninos. Ele limpa o pó a esse lugar. Standing ovation.
Um coelho da Páscoa apresenta-se junto de um árvore de Natal. Os enfeites são mensagens a programadores culturais, de programadores culturais, a ministros – primeiros e segundos. O coelho da Páscoa transforma-se num homem. O homem conversa com um programador imaginário. O homem transforma-se numa mulher. Essa mulher é uma prostituta do Cais do Sodré. Standing ovation.
Apresenta-se ao público. Não fala. A música começa. Cobre todo o seu corpo de fita-cola, larga, amarela e escrita. Fragile. Cai, morto. A música continua. Standing ovation.
16 de Novembro, Dia Nacional do Mar. Teatro. As cortinas estão já abertas. Num canto, uma mesa de mistura, uma cadeira e nela um homem. O ecrã azul começa a ter imagens. Durante hora e meia, assiste-se a todo o dia do homem. Tudo o que antecedeu aquele momento. Até àquele momento. Até nos vermos a entrar de novo na sala do espectáculo. Apresenta um dogma sobre produção artística. Distribui-o pelo público. Standing ovation.
Entra na sala como em casa. Dança. Transforma a dança. Constrói coisas com sacos de papel. Transforma-os. Transforma-os em si próprio. Morre. Deixa o seu retrato na parede, junto com todas as suas coisas. Standing ovation.

Estes são alguns exemplos, muito sumários, de alguns espectáculos de Miguel Bonneville, Ramiro Guerreiro, Rogério Nuno Costa e Tiago Guedes. Estas peças levantam questões que abarcam desde as políticas culturais do país, até à solidão – passando pela homossexualidade, identidade, género, família, práticas artísticas ou ideologias subjacentes a um sistema político e social.


[Imagem: 'Um Solo' de Tiago Guedes (2002)]

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Sunday, June 22, 2008

...das identidades (take #31) Standing Ovation (1ª parte)

Estamos a mais de meio da primeira década século XXI. Estamos em Portugal.
Estamos [estávamos...] em 2007, no segundo semestre, no último trimestre. Estamos cá, mas quem somos? Quem nos vê? Como nos vê? Como nos vemos?

Na obra performática, o tempo está a ser manipulado aqui e agora, o que somos aqui e agora também. Daqui por cinco minutos já não será o mesmo tempo, daqui por cinco minutos a performance já não será a mesma, daqui por cinco minutos já não seremos os mesmos.
E tudo está em constante devir.

Desde o início deste texto já vários ‘cinco minutos’ passaram. Se entre cada dia de escrita existisse uma quebra de texto, existiriam frases a meio, até palavras. Nada do que acima foi dito, o foi de ânimo leve. Nada ficou sem ser arrancado dos livros, das entrevistas, e tudo quanto podia ser aferido, concluído e construído nessa base, o foi. Haverá por vezes a falta de uma etnografia clássica, descritiva. Tal facto, apercebi-me ao longo do trabalho, não era relevante. Este é um trabalho teórico (correndo o risco de ter um final quase politico), e o trabalho de campo – e mais etnográfico – não foi de observação de espectáculos, foi de encontrar a identidade de cada um. E não só a artística. A pessoal. Dos criadores e de outros portugueses. Até a minha.


[Imagem: 'Flatland' de Patricia Portela (2005)]

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Wednesday, June 18, 2008

...das identidades (take #30) Gravador nº3: Identidade (6ª parte)

A identidade de uma comunidade é uma narrativa erigida com base no que a diferencia das demais.
A identidade de um indivíduo é uma narrativa erigida com base no que o diferencia dos demais.
A memória é uma narrativa erigida com base nos graus de importância de acontecimentos inscritos no tempo.
Em ambos os processos está presente esta noção de diferença que os baseia e os valida. Assim, temos uma identidade e uma memória, que apesar de não serem uma e a mesma coisa, são sincrónicas, equivalentes, e correlacionadas: baseiam-se em pressupostos de manipulação de tempo, realidade e espaço. Reordenam-nos. Redimensionam-nos. E com eles manipulados constrói-se uma história sobre a qual se vive.
A produção artística assenta nos mesmos princípios.
A produção artística poderá ser uma das mais eminentes formas de expressão de uma identidade: individual ou colectiva.
A identidade portuguesa baseia-se em todos estes pressupostos. Contudo, em funcionamento habitua-se à recordação mítica. Recordar é um hábito, mas todas as recordações são de sobeja importância e relevância para a construção dessa mesma identidade, e respectiva memória.
Devido ao carácter mitológico da memória e identidade colectivas portuguesas, as suas memórias fundadoras encontram-se a distâncias actualmente difíceis de sustentar, pelo que a identidade de um povo se começa a desvanecer no meio de outras.
Ainda assim, novas formas de distinção começam a surgir no seio deste desvanecimento: assim se forja noção de progresso doloroso, um avanço que mais nos arranca a uma identidade sob a qual fomos criados, mas que inevitavelmente tem de se dar – uma espécie de fardo que se carrega: todos os séculos que se interpõem entre hoje e o inicio desta historia, a portuguesa.

Não é possível definir a identidade portuguesa sem uma feroz oposição em relação a outras.
Actualmente, a maior oposição identitária com que nos deparamos é connosco. Actualmente, a identidade portuguesa começa a opor-se a si própria – a distância que nos separa do momento instaurador leva-nos a um questionamento desenfreado do mesmo, e a uma raiva que nos começa a ser característica.
A identidade portuguesa começa a opor-se a si própria, e a sua arte começa a reflectir tal facto: o seu fim já não é parar o tempo de determinada maneira, ou em determinado ponto; é pará-lo de qualquer maneira, em qualquer ponto, porque a partir de qualquer ponto será possível combater o esquecimento. E o maior esquecimento contra o qual lutamos é o nosso – contra esquecermos quem somos, contra esquecermos o que é ser português.

[Imagem: 'Acções s/ Título' de Ramiro Guerreiro (2005), Prémio EDP Novos Artistas]

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Friday, June 06, 2008

...das identidades (take #29) Gravador nº3: Identidade (5ª parte)

No campo da produção artística, estes factos, premissas e pressupostos, são plenamente delineados pelos criadores que colaboraram neste trabalho, não só através de uma posterior análise do seu discurso, mas especialmente no discurso em si – num discurso que se entende sem entrelinhas, sem qualquer pressuposto psicanalítico ou interpretativo; não há espaço para interpretação, ele é um discurso dogmático.

Como já antes referido no primeiro capítulo – e seguindo os primeiros pressupostos de Duarte de Carvalho –, no que toca ao tempo de criação da identidade pessoal, a maioria dos criadores não mostrou renitência alguma em apontar os seus primeiros anos da infância, e da adolescência, como memórias fortes e altamente fundadoras de uma identidade mais que pessoal: adulta e profissional. Obviamente, tal facto poderá prender-se com o facto de a amostra de criadores se constituir como uma geração e que, como tal, essa geração (que representam) se manifeste através de memórias de infância – facto que, a ser corroborado, seria imediatamente identificado como o mesmo mecanismo que rege o sentimento de saudade. Contudo, essa relação não é óbvia. A existência deste grupo enquanto representativos de uma geração de criadores é real, porém a sua distância à memória ancestral evocada é de tal ordem que não deveria ser determinante na sua forma de produzir objectos artísticos, construir uma identidade, ou construir uma memória.
Na realidade, esta lonjura temporal que interrompe a identificação através de um mito ancestral promove, a par de um progresso doloroso, uma espécie de saudosismo sincrético. Ou seja, um sentimento indefinido no seu conteúdo, mas que na sua forma e mecanismos muito se assemelha ao sentimento de saudade, uma vez que promove a manipulação de um tempo conceptual – e como tal, imagético – para anular o tempo presente, chorar o passado, e esperar um futuro mais luminoso.
A forma que os objectos artísticos assumem não é independente do seu conteúdo, é sim ditada por ele – já antes foi dito. Porém o mecanismo de produção dos mesmos, mecanismo performance, parece ser também comum à actual construção da memória portuguesa, e por conseguinte da sua identidade. Também na construção de memórias, e de identidades, se vêem múltiplos descentramentos e recentramentos a compor a sua estrutura – cada memória é possuidora de um potencial de conecções, assim como a estrutura identitária o é, assim como o objecto artístico o é.
Produzir artisticamente é construir identitariamente. (Firth, 1996:109).

Tal como já antes referido, as questões levantadas aos cinco criadores acerca do sentimento de saudade foram respondidas igualitariamente entre o ‘sim’ e o ‘não’, trazendo atrás as respectivas justificações. Também já referida, é a linearidade de todas as justificações. Independentemente da resposta inicial, todas as justificações que a procederam revelam algum grau de sincretismo com a noção de saudade. Contudo dividindo-se em vertentes objectiva e emocional entre o passado e o futuro, respectivamente. Ou seja, o passado é encarado com objectividade, como algo para onde não se pode voltar e que já se transformou noutra coisa – em memória ou ruína –, enquanto que o futuro assume agora o papel de maior enfoque emocional. Passou a existir realmente uma esperança à volta de um futuro, que por ser incerto, se pode esperar melhor, novo e inspirador.

Já no que toca à existência de uma memória e identidade colectivas portuguesas, ao contrário da aceitação de algo que se possa entender como saudade – ou forma comum de encarar o passar do tempo, ou o final da existência física –, as respostas, apesar de não serem unânimes, são unânimes na negatividade que carregam.
Mesmo respondendo afirmativamente acerca da existência de uma identidade colectiva, ou movimento artístico que abarcasse uma quantidade razoável de criadores, os artistas não puderam deixar de frisar que a sua existência se baseava em processos que actualmente não fazem sentido, em mitologias moribundas, ou finalmente na dor que advém de um progresso que não é desejado, ou encarado com ligeireza.
Exemplificativos são os discursos de Rogério Nuno Costa, Patrícia Portela e Miguel Bonneville. Quando questionado sobre uma memória e identidade colectiva artística portuguesa, R. N. Costa, afirma: “Eu acho que existe, mas a um nível mau… Que é… Por exemplo, existe em Portugal uma coisa que apelido de “pânico da realidade” que é… que vai bater naquilo que eu te estava a dizer há bocado… Nós realmente queremos ser encantados, porque achamos que realmente que aquilo que nos é dado a ver por produções mais mediáticas, como é o caso da televisão, não é suficientemente encantatório… E temos um pânico atroz da nossa realidade, da nossa própria realidade, e de sermos confrontados com ela… Eu acho que isso é um mal…”[1]; que é o mesmo que dizer que os mecanismos de fuga à realidade não servem a produção artística, e como tal não deveriam servir a memória e identidade portuguesas – ou seja, o que é aqui criticado não é o uso ou manipulação da realidade para a produção de objectos artísticos, é sim que estes escondam, ou abulam, as influencias exercidas por essa realidade no objecto que é produzido. Por outro lado, mas ainda na mesma calha critica, temos a criadora Patrícia Portela que nomeia a antiguidade como fio condutor da memória e identidade portuguesas, quando questionada acerca do mesmo assunto: “Existe, mas é muito antiga, muito antiga... Eu acho que nós continuamos à espera de refazer o império… Secretamente… Mas pronto, sem querer abusar muito, eu refaria essa tua descrição de memória colectiva, e diria… “Para termos uma grande memória colectiva, é preciso que alguém escreva qualquer coisa primeiro!”, ou seja, é preciso que alguém diga qualquer coisa que depois sirva para toda a gente citar… Aliás, quem escreveu as primeiras histórias, viu isto tudo, e nós continuamos a escrever as mesmas histórias derivadas dessas… E acho que sim, que temos uma memória colectiva… Aliás, é muito… Pode ser muito forte, pode ser muito castradora, ou não…”[2], o que nos faz voltar à questão da grande, e inevitavelmente crescente, distância entre o momento presente e o momento instaurador da memória e identidade colectivas. Finalmente, o criador Miguel Bonneville, apesar da negatividade aliada à sua resposta, é o único criador que parece querer nomear e tornar real esta nova coisa que nos torna nós: “Acho que o sentimento é comum, em Portugal… É sempre uma coisa muito dura de se fazer, tem 1000 problemas… Essas coisas todas acabam por passar para aquilo que tu fazes e nem sempre é bom… Fazer parte do processo de trabalho, estares sempre a levar com chapadas na cara… Acaba por trazer uma agressividade para os trabalhos, que se calhar não precisavam de ter… e têm porque acontece aqui… E que se calhar são essa coisa assim, meia agressiva, meia… Tens mesmo de fazer, tens de ultrapassar estas coisas todas, é muito difícil chegares ao fim e deitares isso fora… Acho que é isso que eu encontro em comum… É assim um bocado essa carga…”[3]; ou seja, essa dor de que acima se falava, esse progresso doloroso que nos é imposto, parece ser actualmente a melhor definição de algo – o que quer que seja – que nos defina enquanto pais produtor de sentidos artísticos.

Estes três discursos são referidos pela profusão e pontaria certeira. Contudo, também os criadores Tiago Guedes e Ramiro Guerreiro referem aspectos interessantes da actual produção artística portuguesa e da sua respectiva identidade. Ambos os criadores são peremptórios em afirmar que o contexto social e politico que nos circunda na actualidade não é favorável à formação de um qualquer grupo de criadores que possa ser definido por uma identidade, assim como em afirmar que se assiste hoje a um veloz e crescente processo de homogeneização dos formatos artísticos criados.Por outro lado, Tiago Guedes refere também no seu discurso o olhar exterior de índole tropicalista: “As pessoas interessam-se no sentido de terem uma espécie de… Isto parece ridículo, mas mesmo assim tem uma espécie de olhar quase tropicalista do que se faz em Portugal… Do género: “o que é que eles, lá do canto, estão a fazer?” Algumas pessoas ainda é assim… Porque Portugal, para muita gente ainda na Europa, é um país completamente periférico…”[4]. O que nos remete de volta para Ruy Duarte de Carvalho, Paul Connerton e Eduardo Lourenço: não é possível definir uma identidade – neste caso a portuguesa – sem uma feroz oposição em relação a outras.

[1] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXII.
[2] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXXVI.
[3] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XV.
[4] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. VI.

[Imagem: 'Vou A Tua Casa - Lado A' de Rogério Nuno Costa (2004)]

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Thursday, June 05, 2008

...das identidades (take #28) Gravador nº3: Identidade (4ª parte)

“ (…) Última encenação de todo o nosso ser para aliviar o luto das nossas esperanças desfeitas.” (Lourenço, 1999:98)

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Também no caso português se aplicam estas premissas acima enunciadas. Contudo, e uma vez que a vivência da memória é algo de muito peculiar no caso português, também a identidade terá ressalvas quanto à universalidade dos anteriores pressupostos.
Paul Connerton, falando da sua ideia de memória colectiva, afirmava que também o acto de recordar se podia tornar um hábito – o conteúdo temático, ou factual, continuaria no campo da memória, porém na sua forma essa recordação passaria a fazer parte do campo da habit-memory. Ou seja, o acto de recordar uma memória tornar-se-ia um hábito, uma muleta para a validação de uma atitude recorrente, por exemplo.
Contudo, a identidade portuguesa, como descrita por Eduardo Lourenço, é de carácter mitológico e altamente manipulada ao nível do tempo.
Como já antes visto, esta manipulação não é exclusiva do ser português, é sim exclusivo facto de esta ser praticamente acronológica – tal como os modos de produção artística referidos no capitulo anterior, também as memorias possuem um campo de significação sem circunscrição, e um potencial de conecções praticamente ilimitado.
Assim, no caso da identidade portuguesa, não é tanto o facto de recordar se tornar um hábito, mas antes o próprio teor das memórias que recorrentemente são referidas por hábito. Já foi anteriormente referido que a produção artística portuguesa assenta num mecanismo performance que transporta aspectos quotidianos, de um tempo habitual, para um campo que pressupõe a ruptura com esse mesmo quotidiano, um tempo conceptual. Tal mecanismo aplica-se também à memória portuguesa: cada episódio é transformado numa ode. Deste modo, o hábito de recordar transforma-se num hábito de mitificar: se todas as memórias são importantes, se tudo o que é possível transpor para um universo conceptual o é, e todo o resto é simbólica e conceptualmente esquecido, então todas as recordações serão importantes, todo o que é feito é história e, como tal, o habito de recordar terá como conteúdo apenas recordações de pesado valor emocional e social. Cada história transforma-se num mito.

Eduardo Lourenço define o conceito de saudade, não só como um sentimento que sintetiza na sua enunciação a manipulação do tempo e das memórias, e as noções de melancolia, nostalgia e esperança, mas também como um termo que a cultura portuguesa renunciou a definição, essencialmente porque a saudade deixa de ser um hábito para se tornar numa espécie de entidade.
Como já possivelmente antes adivinhado, este conceito não nos serve, e é substituído pelo de progresso doloroso. Tal facto prende-se essencialmente com uma das premissas base de Connerton para a existência de uma memória colectiva: a existência de uma mitologia fundadora, que tenha em linha de conta as noções sociais como: geração, tempo, estrato social, género, etc. Deste ponto de vista, é-nos possível abandonar o conceito de saudade – ainda que este seja valido na sua definição – uma vez que, na prática, este conceito é contraditório ao nível de uma memória ou identidade colectivas: nossa mitologia fundadora remonta ao Sebastianismo e, por vezes, ao início da Cristandade.
Se a saudade é a memória e consciência da temporalidade carnal, o mito Sebastianino será a memória colectiva de um passado presente, melhor, anterior a uma queda moral. (Lourenço, 1999:140/141)
Ter este facto em linha de conta, é de sobeja importância uma vez que será ele a causa da existência, ou destruição, da ideia de que se encontram edificadas uma memória e uma identidade portuguesas. É neste ponto que assentará então a noção de progresso doloroso – a memória que subjaz a identidade portuguesa começa a ser demasiado antiga para a suportar, e demasiado folklorizada, e o que começa a definir a identidade portuguesa é muito mais essa mesma dor que advém do avanço, e consequentemente de um maior afastamento e questionamento da memória fundadora, do que a própria memória.


[Imagem: 'Miguel Bonneville #1' de Miguel Bonneville (2006)]

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Tuesday, June 03, 2008

...das identidades (take #27) Gravador nº3: Identidade (3ª parte)

Em última análise e de todas estas construções, as que mais interessam no âmbito deste estudo, serão as de Paul Connerton e de Eduardo Lourenço – uma pela definição da ligação entre os indivíduos de uma comunidade mais ou menos alargada, e outra pela definição da identidade que aqui se pretende trabalhar, respectivamente.
Ainda assim, e ainda que assumindo posições acessórias, as restantes construções conceptuais à volta da identidade são valiosas pelo seu imbricamento com as acima referidas, bem como por contributos alternativos às mesmas.

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O eu é sempre imaginado. (Firth, 1996:109)
Esta é a ideia primordial de Simon Firth acerca da construção identitária, e da noção de ideal associada a essa construção. Tal noção advém essencialmente do facto, já antes referido, da construção identitária ser eminentemente narrativa – narrativa essa que será cultural apenas por contingência, uma vez que assenta num anti-essencialismo cultural; ou seja, o pessoal é cultural, mas a narrativa identitária do indivíduo não é sempre sujeita a determinantes sociais.
Contudo, e ainda que por mera contingência, será sempre numa base cultural que a estrutura identitária do individuo irá assentar, e como tal essa contingência não deve ser descurada de análise. Será também sobre ela que assentará a identidade da comunidade a que pertence o indivíduo.
O que torna este facto, um de tão elevado grau de importância, é essencialmente o seu carácter temporal – é o facto de existir um decorrer dessa mesma narrativa identitária. Por outro lado temos também, introduzida neste campo por Firth, a noção de experiência que servirá o propósito de filtrar, de todos os acontecimentos, aqueles que se inscreverão na narrativa identitária do indivíduo, e/ou da comunidade.
Este aspecto torna-se de importância premente, essencialmente, se tivermos em conta que o autor Paul Connerton utiliza as mesmas premissas para definir as estruturas da memória, tanto num plano individual, como colectivo.
Na realidade, estas duas estruturas não parecem ser análogas, mas antes concomitantes e sincrónicas no seu decorrer.

Na sua teorização sobre as estruturas de memória colectiva, tal como os outros autores acerca da identidade, Paul Connerton dá conta dos aspectos narrativos e performáticos do seu processo construtivo. Para o efeito o autor desenvolve uma série de categorizações e tipologias acerca dos diferentes mecanismos de produção de uma memória colectiva – baseada, e base, da individual. Tais categorias apresentam-se sob os binómios: memória/habit-memory e práticas incorporadoras/práticas de registo, sendo que este último resultaria do primeiro. Ao nível das tipologias, Paul Connerton desenvolve uma tríade de géneros de memória: memória pessoal, memória cognitiva e habit-memory (ou capacidade de reprodução performática). Para um melhor entendimento da sua aplicação à produção artística e identitária, explicarei sumariamente o funcionamento destes mecanismos.

O conceito de memória pessoal é de apreensão óbvia: tratam-se das memórias produzidas durante a existência do indivíduo; são de carácter localizado e promovem uma maior consciência do estado presente, uma ideia de causalidade entre o passado e o presente. Por outro lado, a noção de memória cognitiva, apesar de ligada a um passado não o refere no seu funcionamento – ela relega o seu funcionamento unicamente para a experiência de aprendizagem do movimento, técnica, convenção, etc. No extremo oposto à memória pessoal, encontrar-se-ia então a noção de habit-memory, definida pelo autor como um tipo de memória sem qualquer tipo de relação com o passado, uma vez que é reproduzida presentemente sem qualquer tipo de referência ao episódio de aprendizagem dessa convenção, técnica ou movimento – uma reprodução performática, um hábito. Esta tríade tipológica daria origem aos binómios acima apresentados, dependendo unicamente do tipo de performatização escolhida, ou pedida, pelo/ao indivíduo.

O primeiro binómio – memória/habit-memory – caracteriza-se pela oposição entre o que é único no tempo e o que é reprodutível mecanicamente. Assim temos uma habit-memory caracterizada pela sua mecanicidade, a sua ausência de reflexão por parte do indivíduo na sua performance, pela sua reprodução enquanto hábito; enquanto que, por outro lado, a memória seria caracterizada pela sua especificidade temporal e espacial, pela sua irreprodutibilidade, e também, ao contrário da habit-memory que incorpora o acto de recordar como sistemático, por uma ideia de verdade associada a esta memória – ou seja, não é acreditar que a sua memória (a do individuo) seja mais verdadeira que as dos restantes; mas, por ser impossível de reproduzir, a sua inscrição no passado é inalterável e por isso verdadeiramente memorável.
Quanto ao segundo binómio – prática incorporadora/prática de registo –, o autor, define-o como aspecto performático do primeiro. Ou seja, por práticas incorporadoras entendem-se as que sejam convencionais, e que se sustêm no tempo unicamente durante o momento da sua ocorrência; enquanto que por práticas de registo se entendem aquelas se sustêm no tempo muito depois da sua ocorrência e que, ao contrário das primeiras, possuem critérios de consciência, género e número.

Segundo Connerton, estes são passos de evolução na memória social de uma comunidade: a interpretação da realidade passa da oralidade à escrita. Contudo, é inevitável que este tipo de evolução torna a memória social de uma comunidade em algo estagnado e hermético.
Assim, e sem improvisação possível, procuram-se novas formas de expressão da memória – passa-se da improvisação para uma inovação fundamentada, para uma dinâmica de actualização das narrativas de memória.

Do ponto de vista artístico, estas noções tornam-se deveras importantes principalmente se tivermos em conta o que anteriormente foi dito acerca dos meios de produção serem (entre outras coisas) um reflexo da sociedade em que são utilizados. Deste modo, esta segunda evolução – a passagem para uma dinâmica de actualização das formas de expressão de uma memória – é eminentemente criativa, e actualmente suportada pelos meios áudio e vídeo. Foi essencialmente nos sons e nas imagens que foi depositada a responsabilidade de registo das memórias de um indivíduo, ou de uma comunidade; e é o seu carácter tecnológico que confere, posteriormente, às memórias o seu carácter dinâmico, e às formas que assumem o seu carácter actual.
Por outro lado, e ainda no campo artístico, desenvolve-se uma outra maneira de expressar memórias partindo exactamente desse pressuposto de prática de registo teorizado por Connerton. Partindo de uma base ritualista, é então desenvolvido um género de registo único na sua ocorrência, e que se sustém no tempo para alem dela: a performance e o happening.[1] Estes dois géneros, apesar de únicos no tempo (embora enumeradas vezes sejam documentados com a utilização dos meios acima referidos), revelam-se como uma prática de registo e como promotores de uma dinâmica de actualização, uma vez que não têm a pretensão de expressar uma qualquer memória através da sua reprodução, mas antes através da ideia de verdade acima referida: ou seja, a memória não é reproduzida, ela é intuída esteticamente pelo indivíduo e apresentada sob uma forma igualmente estética, tornando-se numa nova memória inscrita no tempo, ao invés de uma reprodução de memórias anteriores – um apoderamento e manipulação (dinâmica) da realidade passada, para a transformar em algo que é novidade (actualização) e verdadeiro.

Igualmente importante é perceber que estas estruturas e processos que regem a memória, tal como acima descrito, são absolutamente os mesmo que regem a construção identitária.
Tal como a memória, também a identidade assume a forma de uma narrativa, de um discurso que decorre no tempo, e para a qual são escolhidos momentos específicos e únicos da existência do indivíduo, ou da comunidade. A partilha processual estende-se também ao campo dos resultados: também o conceito de identidade pressupõe que haja uma dinâmica de actualização da narrativa identitária, e igualmente pelos meios áudio e vídeo, bem como pela modalidade performática, que existem no caso da memória. Ou seja, também a identidade se baseia, e reflecte, no que acontece no ambiente circundante ao indivíduo, ou à comunidade onde este se insere.
Deste modo, é possível afirmar que estes dois processos não são equivalentes ou concomitantes. Eles são um único processo que a partir de certo ponto se ramifica – uma espécie de rizoma.
O que temos então é um processo que como resultado apresenta uma memória e uma identidade: uma história e uma atitude, ambas profundamente ligadas tanto a um plano real como a um plano imaginário – objecto e desejo. Uma história que baseia a atitude, e uma atitude que espelha a história. Outro aspecto interessante deste processo é a sua dialéctica, a sincronia dos dois rizomas: ambos se actualizam constantemente e simultaneamente; cada atitude passa a ser história para novas atitudes, e a história é sempre evocada quando é necessário fundamentar ou validar uma atitude. Resta referir que esta estrutura em rizoma se poderá aplicar, tanto num plano individual, como colectivo – comunitário, social ou nacional.

[1] Estes dois tipos de registo são de índole performativa, sobretudo no que toca à forma. Contudo diferem no seu conteúdo: a noção de performance remete para um campo de significação mais pessoal, e mais discursivo; enquanto que, por outro lado, o happening remete essencialmente o espectador para a experiência estética.


[Imagem: 'Trio' de Tiago Guedes (2005)]

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