Tuesday, July 29, 2008

...das identidades (take #38) Defesa #1: Autocrítica

Clifford Geertz escreveu: “o campo da antropologia da performance pode ser lido como um manuscrito estranho e desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos.” (Geertz, 1978:20)
Este trabalho resulta de uma crise.
Victor Turner, antropólogo de renome, teorizou acerca dos dramas sociais, e das performances que lhes correspondiam, forjando quatro categorias, ou estádios, de um processo de resolução de uma crise: ruptura, intensificação de crise, acção reparadora e desfecho.
A minha ruptura já se deu, a minha crise já se intensificou, a minha resolução já se deu e este é o meu desfecho. Também eu me assumo como liminar, como em transição, por que o sou, ainda. Entre o ritual e o teatro, entre o discurso e a acção, entre a antropologia e a performance.
É critico tentar fazer, ou faze-lo realmente, um trabalho sobre performance em Portugal – ela existe, mas em modo marginal –, tanto como é critico ser-se performer em Portugal.
No seu discurso, os nossos artistas revelam um discurso estudado, ensaiado (por vezes mecânico) e devidamente estruturado acerca da sua postura profissional. Contudo quando questionados acerca da sua postura enquanto artistas de um país e do mundo, estes mesmos artistas reflectem a instabilidade que esse mesmo pais atravessa – tanto a nível do universo artístico, como das próprias ciências que o estudam. Tal facto revelou-se por vezes frustrante, e complicou a interpretação desse mesmo discurso e o seu aproveitamento para produção de algo que se queria académico e científico. Frustrante, porque nem eles, as fontes, pareciam poder dar-me as respostas que procurava.
Também a antropologia em Portugal se encontra em crise, também ela é liminar.
Durante a feitura deste trabalho, eu próprio questionei inúmeras vezes, não a sua validade – a mim sempre me pareceu premente, talvez muito devido ao estatuto que as artes têm no país –, mas antes o seu carácter antropológico.
É um facto que muitas das fontes documentais provêm de uma variedade de áreas que não se coadunam à primeira vista com a prática antropológica. Contudo, ele é antropológico.
E é o mais agora do que foi antes.
De acordo com artigos publicados pelo Núcleo de Antropologia da Performance e do Drama, da Universidade de São Paulo, o termo performance vem do francês antigo “parfournir” – que significa completar ou realizar inteiramente.
Por outro lado, Victor Turner (novamente) afirma que a experiência se completa na “expressão”. Tendo em conta o grau experimental deste trabalho, esta é a minha expressão, a minha realização inteira do mesmo. Esta é a minha performance. Como qualquer prova académica, se a encararmos como um rito de passagem, também esta possui esta vertente de desfecho de uma crise anterior.
Este trabalho é mais antropológico hoje do que foi antes, porque se completa agora. E porque agora há consciência de que se atravessaram fases de ruptura e de crise que precisavam de ser resolvidas. Ele é mais antropológico hoje, porque foi feito (ainda que inconscientemente) em activa observação participante: a colaboração dos artistas, tornou-me tão marginal e liminar quanto eles, tão guerreiro quanto eles. Também eu, com eles, questionei a validade do meu trabalho, e a minha identidade enquanto antropólogo e enquanto português.

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Tuesday, July 22, 2008

...das identidades (take #37) Defesa #3: História da Carochinha Performativa...

...ou a Performance Explicada às Crianças



Era uma vez, num país pequeno e há muitos, muitos anos, um menino chamado Sebastião. Sebastião gostava de andar de cavalo. Sebastião era dono e senhor de uma terra de sonhos.
Um dia mandaram Sebastião para a guerra em África, de onde nunca mais voltou. Desde então conta-se a história do menino Sebastião e espera-se que ele regresse numa manhã de nevoeiro.
Muitos anos depois nasceu no Norte desse mesmo país, um outro menino: (...).
(...) lembrava-se da história do menino Sebastião. Mas já tinha passado tanto tempo que a sua história, apesar de ainda ser contada na escola, e pelos avós, já não tinha importância para ele.
Um dia, o (...) tornou-se artista e começou a fazer as suas próprias histórias, sem se lembrar do menino Sebastião que tinha sido tão importante para o seu país pequeno, mas que já pouca gente se lembrava dele, ou então lembrava-o como uma anedota ou cujo regresso jamais iria acontecer. Num outro dia, (...) e outros meninos, esqueceram-se mesmo do menino Sebastião, que tinha deixado mesmo de ser importante, e começaram a viver sem se lembrar da história que lhes dizia quem eram.

Esta história, apesar de corriqueira, reflecte o estado da identidade nacional associada à produção artística.
A saudade que nos é tão característica, deixou de o ser em relação a um passado distante, a passou a sê-lo em relação a pedaços de passado que se confundem na sua posição temporal.
O tempo, de tão parado que o quisemos, começa matar-nos enquanto povo, enquanto cultura. O nosso país de poetas, já não tem poetas seus.

O tempo que decorreu entre um momento instaurador de uma memória que nos liga a todos é de tal forma longo que começa a ser impossível de suportar – para quem ainda o suporta. O tempo passou e nós ficámos lá atrás, ou melhor, ficámos a pairar acima da corrente do tempo – ou assim o pensamos. A performance como modo de reencarnar enunciados míticos em novos contextos culturais já foi; estes enunciados já não fazem sentido na actualidade, e as memórias que compõem esta nova mitologia (que sustenta uma identidade portuguesa actual) encontram-se desconexas e sem estrutura.
Victor Turner e Walter Benjamin, predisseram o enfraquecimento da experiência liminar e o declínio das tradições narrativas, assim como o empobrecimento da experiência do tempo e dos seus eventos extraordinários.
No caso português, devido à sua especificidade na vivência do tempo, este declínio deu lugar – não a um enfraquecimento da experiência –, mas antes a um embrutecimento da experiência. A ausência de estruturas conceptuais, e a fragilidade das estruturas identitárias enquanto povo, deixa-nos mais sensíveis a experiências artísticas, que por sua vez se tornaram mais brutas e mais cruas – mais pesadas.
Neste aspecto, a produção artística portuguesa não possui tendências temáticas, como acontece noutros países europeus. Porém, o uso do “eu” como ferramenta de trabalho acaba por remeter para um contexto social que envolve o artista criador e que interfere – como interferirá sempre – na produção de objectos, discursos e sentidos artísticos.

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Tuesday, July 15, 2008

...das identidades (take #36) Obrigados

Obrigado a:

Manuela Ferreira,
Fernando Ferreira,
João Ferreira.

Professora Catarina Alves Costa.

‘Juju’,
Samuel,
‘Mimi’,
Pedro,
Samanta,
‘Manel’,
Luísa,
Nuno,
Jorge.

Obrigado Rogério.

Aos artistas:
Tiago Guedes,
Miguel Bonneville,
Ramiro Guerreiro,
Patrícia Portela.

Dinis Machado.

Alexandre Lopes,
Tiago Santos.

[Imagens: 'Please, let me not do this right now' de Guilherme Ferreira (2007)]

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Monday, July 14, 2008

...das identidades (take #35) Referências

Obras:

CARVALHO, Ruy Duarte, Ana A Manda – Os filhos da rede, I.I.C.T. – Ministério da Educação, Lisboa, 1989;

CASTRO, Augusto de, A Exposição do Mundo Português – E a sua Finalidade Nacional, Empresa Nacional de Publicidade Ed., Lisboa, 1940;

CONERTON, Paul, How Societies Remember, Cambridge University Press, Cambridge, 1989;

DUCHAMP, Marcel, O Acto Criativo, Colecção Água Forte, Tango – Edição, Lisboa, 1997;

FRITH, Simon, “Music and Identity” in Stuart Hall & Paul du Gay (ed.), Questions of cultural identity, SAGE Publications, London, 1996, pp. 108-127;

FRÓIS, João Pedro, ANDRADE, Pedro et al. (ed.), Art and Science – Proceedings of the International Association Of Empirical Aesthetics, I.A.E.A., Lisboa, 2004, pp. 391-395;

HEGEL, Georg W. Friedrich, Estética – O Belo Artístico ou o Ideal, Guimarães Editores, Lisboa, 1964;

LOURENÇO, Eduardo, “Mitologia da Saudade” in Portugal como destino seguido de Mitologia da saudade, Gradiva, Lisboa, 1999, pp. 85-179;

MARQUES, Emília Margarida, Cantigas e Cristais – actividade cultural, passado, identidade [texto policopiado], dissertação de mestrado em Antropologia, F.C.S.H.-U.N.L., Lisboa, 1995;

MCDOUGAL, David, “Films of memory” in Lucien Taylor (ed.), Visualizing theory – Selected essays from V.A.R. 1990-1994, Routledge Ed., London, 1994, pp. 260-270;

MEAD, Margaret, “Visual anthropology in a discipline of words” in Paul Hockings (ed.) Principles of visual anthropology, Mouton de Gruyter Ed., Berlin, 1995, pp. 3-10;

METELLO, Verónica Gullander, Focos de intensidade / Linhas de abertura – A activação do mecanismo performance: 1961-1979 [texto policopiado], dissertação de mestrado em Historia da Arte Contemporânea, F.C.S.H.-U.N.L., Lisboa, 2007;

PROST, J.H., “Filming body behaviour” in Paul Hockings (ed.) Principles of visual anthropology, Mouton de Gruyter Ed., Berlin, 1995, pp. 285-313;

RUSSEL, Catherine, Experimental Ethnography – The work of film in the age of video, Duke University Press, United States of America, 2003;

STOLLER, Paul, “Artaud, Rouch, and the cinema of cruelty” in Lucien Taylor (ed.), Visualizing theory – Selected essays from V.A.R. 1990-1994, Routledge Ed., London, 1994, pp. 84-98;

THOMAS, Nicholas, “Collectivity and nationality in the anthropology of art” in Marcus Banks & Howard Morphy, Rethinking visual anthropology, Yale University, Great Britain, 1997, pp. 256-275.

Periódicos:

ADLER, Laura, “Qui êtes-vous Sophie Calle?” in Fabrice Bousteau (ed.) Beaux Artes – Magazine, TTM Éditions, Boulougne, Junho 2007, n.º 276, pp.48-55;

ALEXANDRA, Luísa, “Espaços de intimidade, espaços de construção de identidade” in José Fernandes Pereira (dir.), ArteTeoria – Revista do mestrado em Teoria da Arte da F.B.A.U.L., Facsimile Lda., Lisboa, 2005, n.º 6, pp. 198-214;

BOUSTEAU, Fabrice, “Sonia Khurana – Vidéo Performeuse” in Fabrice Bousteau (ed.) Beaux Artes – Magazine, TTM Éditions, Boulougne, Junho 2007, n.º 276, pp. 70-71;

FARO, Pedro, “50 Anos de Arte Portuguesa – Processos de Arte” in Paula Brito Medori (dir.) L+Arte, Entusiasmo Media Ed., Lisboa, Junho 2007, n.º 37, pp. 30-35;

LEQUEUX, Emmanuelle, “À qui servent les biennales?” in Fabrice Bousteau (ed.) Beaux Artes – Magazine, TTM Éditions, Boulougne, Junho 2007, n.º 276, pp. 60-62;

LOURO, Maria Calem “Um Mundo Pequeno – Atelier de Julião Sarmento” in Paula Brito Medori (dir.) L+Arte, Entusiasmo Media Ed., Lisboa, Junho 2007, n.º 37, pp. 64-67;

MEDORI, Paula Brito, “Entrevista a Jürgen Bock” in Paula Brito Medori (dir.) L+Arte, Entusiasmo Media Ed., Lisboa, Junho 2007, n.º 37, pp. 22-26;

MELTZ, Hortense, “L’Art contemporain s’invite au Louvre” in Fabrice Bousteau (ed.) Beaux Artes – Magazine, TTM Éditions, Boulougne, Junho 2007, n.º 276, pp. 110-113;

PEREIRA, José Fernandes, “Génese e rumos da contemporaneidade portuguesa” in José Fernandes Pereira (dir.), ArteTeoria – Revista do mestrado em Teoria da Arte da F.B.A.U.L., Facsimile Lda., Lisboa, 2005, n.º 6, pp. 12-30;

RAMPLEY, Mathew, “Art history and cultural difference: Alfred Gell’s anthropology of art” in Deborah Cherry, Art History, Blackwell Publishing Ltd., Oxford, 2005, vol. 28, n.º 4, pp. 524-551;

ROCHA, Michele, “António Dacosta – À procura de um tempo mítico” in José Fernandes Pereira (dir.), ArteTeoria – Revista do mestrado em Teoria da Arte da F.B.A.U.L., Facsimile Lda., Lisboa, 2005, n.º 6, pp. 135-151.



[Imagens: 'Please, let me not do this right now' de Guilherme Ferreira (2007)]

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Sunday, July 13, 2008

...das identidades (take #34) Standing Ovation (4ª parte)

No campo identitário, Portugal continua a não conseguir estabelecer prioridades. Enquanto que para o processo artístico são seleccionados episódios segundo o seu grau de importância, a nível identitário tal continua a não se verificar. A identidade portuguesa continua a ser mítica, imaginada e a ter características de uma qualquer ode. Tal facto não teria tanta importância se a sua actualização se desse; porém a fundação desta identidade continua a remontar à Expansão Marítima e aos Descobrimentos.
Esta identidade continua a produzir-se com base num dos processos mais primitivos, porém dos mais complexos e de mais complexa apreensão, de produção identitária: a imaginação. Um processo de transformação da realidade circundante, numa outra mais aprazível, mais fácil e mais lenta.
Apesar de se começar a desvanecer na sua forma e no seu conteúdo, a identidade portuguesa continua a ser única pelo seu processo de produção. Na realidade, nesta era de sobrelotação de informação, de imagens, de rapidez e de transformação, a identidade portuguesa parece ser uma das mais aptas à sobrevivência dos indivíduos. Pelo menos a um nível cognitivo. Ela poderá parecer algo esquizoíde a quem de fora venha, mas é ela que nos permite sobreviver a esta rapidez, e sobretudo à nossa existência física. É este viver na memória. É este viver na arte que nos permite não sermos esquecidos.

Gina Arnold disse, citando Henry Rollins, que a música existia para pôr mobília na nossa mente, porque a vida é cruel e a televisão é tão mesquinha[1].
Eu digo, citando Gina Arnold citando Henry Rollins: a arte existe para nos pôr pensamentos na cabeça, porque a vida é cruel e a televisão não presta.
A vida é um calvário, e nós – portugueses – só queremos que não o seja tanto. Standing ovation.


[1] ARNOLD, Gina, Route 666. On the Road to Nirvana, St Martin’s Press, Nova Iorque, 1993, p.228.

[Imagem: Promocional de 'Vou A Tua Casa - Triologia' de Rogério Nuno Costa, por José Luis Neves (2005)]

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Wednesday, July 09, 2008

...das identidades (take #33) Standing Ovation (3ª parte)

Enquanto agente social, a arte parece levantar questões que, ainda que fossem levantadas por outros meios de comunicação, não teriam o mesmo impacto. Questões politicas, questões tabu, questões sociais, questões artísticas, etc. Enquanto agente social, a arte deixou de ser encantatória, deixou de ser denúncia. Como sempre o foi, ela agora assume-se desinibidamente como discurso, como forma de pensamento, como conhecimento, como poder.
Por outro lado, e pela sua analogia não só de estrutura, mas também de processo de criação, a arte passou também a assumir-se como identidade. Tal facto não se prende tanto com o trabalho acerca do eu – apanágio da contemporaneidade –, mas antes com o uso do eu como instrumento para marcar uma posição artística, politica e social.

Tal como a arte portuguesa, apesar de eminentemente pós moderna, também a identidade portuguesa se apresenta romântica no seu âmago[1]. Uma identidade assente num imaginário que tal como o Portugal dos Pequeninos necessita, actualmente, de uma limpeza. E a arte começa a reflectir esse acumular de velhice identitária.
Parece ser razoável afirmar que o facto de possuirmos uma identidade mítica, e tão imaginada como o passado que reproduzimos em manifestações culturais, nos tem impedido de nos actualizarmos identitariamente – de reordenar as nossas memórias, de integrar as novas memórias e construir uma identidade renovada sem esquecer todo o que já passou por nós, ou tudo aquilo por que passámos.

As mortes simbólicas e as anulações do tempo presente, ou até as demonstrações do estado da humanidade, apresentadas por estes artistas não são votos ao esquecimento. São antes arquivos: tratar de um assunto para que se possa passar ao próximo, para que o passado seja resolvido e arrumado. Para que com base nele se possa andar para a frente – no tempo, no espaço, e no conhecimento.
A arte já está a andar para a frente. Também ela deixou morrer muitas das suas práticas. Práticas que ainda hoje fariam sentido segundo alguns destes criadores. Mas está a andar para a frente, em direcção a algo que ainda não se sabe bem o que vai ser.

[1] Patrícia Portela. Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXXVI.


[Imagem: 'Banquete' de Patricia Portela (2008)]

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