Monday, January 15, 2007

Radio-Performance (take #3)

...2ª parte...

Por último, apresentarei uma pequena lista de conceitos ligados à apresentação pública de produções expressivas (mais ou menos rígidas), discutindo-os, na sua essência e na sua relação com o género específico da performance. Decidi utilizar os conceitos que seguidamente se apresentam, não tanto porque se encontrem directamente relacionados com a performance, ou porque fazem parte da sua conduta ou da sua praxis, mas sim porque ajudam a defini-la, tanto numa vertente positiva (pela concordância entre os conceitos, e a sua definição, e a prática performática) como numa vertente negativa (tentando defini-la não só pelo que é, ou pode ser, mas também pelo que não é). Parece-me também importante referir desde já a fonte dos mesmos: a obra de Viola Spollins da qual foram retirados consiste numa espécie de manual de regras de representação avant garde, de improvisação e/ou teatro experimental. Os conceitos referidos provêm então de uma listagem apresentada pela autora no final da obra, e são tidas como fundamentais para qualquer apresentação publica possuidora de qualidades que a tornem credível do ponto de vista artístico e cultural (o termo é utilizado fora do seu sentido do senso comum - define não um conjunto de objectos artísticos tidos como bons e como modelos a seguir, mas sim um conjunto de regras e convenções que regem uma comunidade nas áreas social, politica, económica, religiosa, ritual, material, etc.).

Comecemos pelo conceito de act.
Act, em inglês significa, para além de representar, agir – que no campo das artes performativas adquire, não só um sentido mais profundo do que na representação mais clássica, mas também uma maior importância estrutural e prática: na performance representa-se como se representa sempre no quotidiano (tomando como apoio a teoria Goffman'iana), todos desempenhamos papeis no decorrer das nossas vidas, umas vezes mais colados às nossas essências, outras mais desapegados daquilo que tomamos como o nosso eu mais verdadeiro. Contudo, é na acção que reside o seu impacto, a sua força motriz; isto é, muito mais do que representar, fazer performance é agir, sobre o real, sobre os outros, sobre nos próprios.
Ad-lib: este conceito surge definido por Viola Spollins como agilidade intelectual individual, ou seja, não se prende necessariamente com a improvisação numa apresentação publica, mas antes com o dar a volta a certos obstáculos criativos que se apresentam na altura da concepção do objecto artístico. Ele acaba por definir algo que, mais à frente, será de sobeja importância para compreender a performance do ponto de vista antropológico: a capacidade de manipulação das regras, papeis e estatutos sociais.
Outro conceito importante é o de audience – cuja definição nos surge em duas partes distintas (do ponto de vista performativo): a primeira prende-se com a ideia clássica de uma audiência, público, conjunto de indivíduos, exterior e cuja única função (se é que assim poderia chamar-se) é a de observar e teria como principal e primordial direito o entretenimento; este facto faria com que a audiência fosse enfrentada com a máxima reverência – é então preciso definir a importância de uma audiência no campo da performance: ela é obviamente necessária, mas é-o na medida em que é necessária para todo e qualquer tipo de expressão; ou seja, a audiência não deve nem pode ser descurada aquando de uma apresentação, mas ao mesmo tempo ela não deve ser deixada em paz, não deve ser deixada sossegada, deve ser espicaçada, para a acção e para o pensamento. Há, porém, uma segunda parte da definição que entra em acordo com a ideia de performance que se quer transmitir: o observador como observado, um publico que não está só para ser entretido ou observar acções, mas também um público que age, que faz parte do espectáculo, da acção.
Awareness é um daqueles conceitos cuja definição não é potencialmente complexa ou definidora exclusiva da performance, porém, define uma das qualidades mais importantes de um indivíduo para a realização da mesma (seja no campo das artes, no campo social, tecnológico, etc.): a atenção. E atenção a quê? Ao ambiente circundante, às condições que definem o momento e fazem com que ele seja como é.
Os dois primeiros conceitos utilizados para definir negativamente a performance surgem quando a autora, no seu glossário pessoal, inicia a letra C com este díptico: character e characterization. Quanto a mim estes dois conceitos definem negativamente a performance porque é exactamente disso que ela pretende fugir, da personagem: todos nós as somos, personagens várias, muitas vezes podemos ser até mais do que uma – ora se o somos para quê criar mais uma, porque não aproveitar todo o potencial criativo que já possuímos e manipulá-lo a nosso belo prazer e com objectivos definidos (esta, para além de ser a premissa base da performance no campo artístico, é fulcral na definição da performance do ponto de vista antropológico: E. Goffman, V. Turner)? É com esta ideia que se parte para a criação de objectos artísticos, objectos que estão ligados a um criador, mas que são exteriores a ele. Quanto à caracterização, podemos tomá-la como contingente, ou seja, ela não é necessária e quando surge é numa tentativa de tornar maior a descaracterização, de apersonalizar.
Crisis: este conceito parece-me ser importante sobretudo aquando da criação do objecto artístico (ou, no caso do campo socio-cultural, do objecto resolutório), uma vez que é definido como uma série de eventos, momentos de tensão, cujo resultado é, para além de desconhecido, potencialmente transformador.
Detachment é um outro conceito que define negativamente a performance: a sua definição na obra de Viola Spollins não se separa da definição do senso comum, assim sendo separação significa nada mais do que separação. Ou seja, este conceito serve para definir um tipo de atitude/postura face à representação que permite ao intérprete a manutenção de um suposto eu único e coeso. Contudo, este conceito entra em contradição com a ideia inicial da performance, de que não é necessária representação, de que o ambiente à nossa volta nos fornece informação, cenário, material, etc., quer dizer, não deveria existir separação porque estamos a ser nós próprios – de forma algo estilizada, mas ainda assim nós próprios –, isto é, se a ideia é não encarnar uma personagem de que nos vamos separar? De nós?
Exposure (exposição) caracteriza-se pelo carácter negativo na ajuda da definição de performance: exposure seria então a percepção directa da essência de um indivíduo, e não como o mesmo gostaria de ser percepcionado ou como os outros preferem percepcioná-lo. Contudo, e especialmente do ponto de vista filosófico, esta definição é paradoxal desde o seu inicio – é tecnicamente impossível existir uma aparição individual que represente toda a essência de um individuo, tal como é também impossível a percepção sem o recorrer a memorias passadas de percepções semelhantes, a percepção pura, descomprometida e sem preconceitos. Esta é talvez uma das ideias que mais ajudou à construção da imagem de polémica e unicidade do género expressivo da performance: esta aceitação da ideia de que as coisas, os objectos, os indivíduos, são como são e são-no num dado momento histórico, cultural, social, económico, politico, religioso, etc., são-no conjunturalmente. Nesta medida, perante a aceitação destes factos, pode realmente falar-se de uma percepção da essência das coisas, dos objectos e dos indivíduos, mantendo sempre presente a noção da sua própria mutabilidade, dinâmica, variação, etc.
O conceito de illusion é definido por Spollins como um antónimo do conceito de teatro: uma realidade acordada e entendida pelo criador e pela audiência – ou seja, a realidade apresentada é real, mas não é a totalidade da realidade; o que, ao fim e ao cabo, também nos pode dar uma imagem ilusória do mundo. Não poderá o indivíduo espectador tomar a parte da realidade como a sua totalidade? E até que ponto não será a construção desse acordo de realidade, uma produtora de ilusão, ou até uma ilusão?
Porém, quando alcançamos neste glossário a letra I, surgem dois conceitos correlacionais e de extrema importância na definição de performance: intellect (intelecto) e invent (invenção; mas num sentido mais ligado ao plano ideológico do que ao plano material). No caso do primeiro, este define-se como sendo um aparelho de recolha e processamento de informação de todo o tipo, aparelho esse que se encontraria intimamente ligado ao corpo – componente orgânico do indivíduo (poderia encetar-se uma longuíssima discussão filosófica sobre a existência, ou não, desta dicotomia entre interior e exterior, ou entre corpo e alma; contudo ela não nos pertence agora e por isso deixamo-la para mais tarde). No segundo caso, invent, o conceito é definido como rearranjo da informação recolhida; ou seja, voltando um pouco à definição do conceito de ad-lib, este será também um conceito que se refere à capacidade de manipulação dos elementos que rodeiam o indivíduo em dado momento. O que se pode dizer acerca destes dois conceitos é que quanto mais imbricadas estiverem as componentes física e psíquica do indivíduo, maior será a sua capacidade de invent, que por sua vez despertará um maior interesse, ou especialização, por parte do intelecto para recolher mais informação e alargar o vocabulário de invenção do individuo.
O conceito de objective (objectividade) como tudo o que é exterior ao indivíduo e como a capacidade de aceitação dos fenómenos na sua natureza inicial sem uma necessidade urgente de os transformar – como já dito anteriormente uma ideia fulcral na performance.
Eis senão quando nos surge o conceito de performance propriamente dito.
Performance é então definida pela autora como um momento de desprendimento, de rendição a uma qualquer espécie de força maior de criação harmoniosa e rejuvenescedora, e até aqui tudo bem, apesar de se tratar de uma definição talvez demasiado lírica e vaga; contudo é referida uma ausência de ligação com o passado e o futuro. Será aqui que tenho de deixar de concordar (ou aceitar) com a definição da autora: é um momento presente sim, mas ele não teria existido sem um passado antecedente a ele e, decerto, conduzirá a um futuro mais ou menos próximo. Então porque ignorá-los e tornar esse momento de rendição num momento temporalmente estanque? Não será isso uma contradição com a noção de objective e exposure? E se existe a capacidade de manipular simbolicamente a informação, não seria razoável manipular também essa ideia de passagem, de um presente momentâneo que resulta de um passado e resultará num futuro?
Um outro conceito que surge definido pela autora é point of concentration, contudo, e apesar do interesse e relevância do conceito, ele aparece definido de forma algo contraditória se o olharmos do ponto de vista performático. Existe geralmente este ponto de concentração em performance, sobre o qual é gerado o objecto artístico, e sobre o qual se irá agir, e é (tal como na definição) um apoio ao receber da informação que o performer quer fazer passar, um apoio à comunicação – não é contudo (em performance) um modo de atingir a separação, uma espécie de fio de Ariane que nos conduz de volta à realidade.
Por último nesta definição de performance, utilizou-se o conceito de process (processo): definido como um objectivo, e o seu objectivo tornar-se infinito, sem uma frase final, porque não há fim; traduziria as ideias de relação, sistema e cena – fazendo referência aos conceitos já anteriormente citados de momento, dinâmica, mutabilidade, etc. Este é também um dos mais importantes conceitos definidores do chapéu que é o conceito de performance.

Neste texto, neste inventário, nem todos os conceitos (aliás, maior parte deles) não são os utilizados nos textos que se seguem, em parte muitas vezes porque não me pareceram os mais adequados. Tal pode dever-se ao facto da obra utilizada para listá-los datar de 1987, década fulcral para a definição de fronteiras entre a performance e o género expressivo do qual descende: o teatro.
Contudo, estes conceitos são-nos úteis para entender do que se fala, o que interessa e o que se pode deixar de lado – muitas vezes a maioria destes conceitos são postos de lado: como todas as regras, também estas servem para ser contornadas, ultrapassadas, ignoradas, manipuladas, acartando (como em tudo) as devidas consequências, mais ou menos conscientes. Esta listagem serve também o propósito de traçar um paralelismo, à la Goffman, entre a vida dita real e aquela que queremos levar, a representação – seja ela mais ou menos estilizada, mais ou menos consciente –, bem como o paralelismo entre a performance artística e a performance social (V. Turner).
Em suma, e para finalizar, o que se pretende é criar uma definição conceptual por aproximação aos conceitos regentes de um outro maior – sejam-no mais ou menos activamente, conforme a situação, o indivíduo, cultura, etc.

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