Tuesday, March 25, 2008

...das identidades (take #7) - Conceitos-Chave: Identidade e Saudade

Passamos ao conceito de identidade.
Para a explicitação deste conceito invocamos primeiramente o autor Ruy Duarte de Carvalho[1].
Na obra de 1989, “Ana A Manda”, Duarte de Carvalho define identidade como a produção de evidências, de elementos distintivos de um universo circundante; podendo ela ser mais ou menos colectiva, e portanto, podendo essas evidências ter maior ou menor força. (Carvalho, 1989: 320)
Com base nas mesmas premissas, mas por outra perspectiva surge o autor Simon Firth. Este autor define, no seu artigo “Music and Identity”, o conceito supracitado como duas peças interligadas: a parte móvel e a parte empírica; ou seja, um processo dinâmico, e o resultado desse mesmo processo. (Firth, 1996:109)
Não bastando, surgem-nos ainda – na tese de Emília Margarida Marques –, as noções de conflito e discurso, ambas associadas também ao conceito de identidade.
Pois então que identidade é esta que pode ser todas estas coisas? Será ela todas estas coisas?
Sim.
Um pouco à moda de Michele Rocha, existe uma espécie de sacralidade na construção identitária que resume e agrupa todos estes elementos (que por vezes se contradizem entre si). Assim para o propósito deste trabalho, o conceito de identidade definirá não só aquilo que nos distingue – enquanto indivíduos ou enquanto grupo social –, mas também todo o processo que dessa distinção, e/ou pertença, advém. (Rocha, 2005:140)
Identidade será então a gestão de diferenças entre indivíduos de uma comunidade, e entre essa comunidade e outras: essa gestão pode denominar-se também por conflito e constrói-se com base num discurso narrativo que servirá de validação à identidade pretendida. O substantivo pretensão não é aqui utilizado em vão, ou levianamente – ele surge exactamente porque a identidade é construída pelo indivíduo, ou pelo grupo, no discurso sobre essa mesma identidade, possuindo assim (e ainda) uma componente onírica, bastante característica do processo identitário.
Identidade será também um processo, uma postura face à experiência de algo – acontecimento social, estético, económico, religioso, etc. –, será discurso à volta dessa experiência, e discurso à volta desse processo; e mais do que resultado, esse discurso será meramente mais processo; ou seja, a identidade possuirá formas e preceitos mais ou menos estáveis, porém passíveis de alterações profundas; sendo que estas advirão do grau de diferenciação pretendido pelo indivíduo, e/ou grupo, em relação a outro individuo e/ou grupo. Em suma: identidade é criação.
Quem são, então, aqueles que criam? Passamos ao conceito de artista.

Como já foi antes referido, o conceito de artista define-se – para o propósito deste trabalho – como o indivíduo que cria objectos artísticos; muito mais do que aquele que os executa: o intérprete. Ainda que estas duas posições sejam concomitantes, será sempre na posição de criador que o individuo artista será relevante para esta pesquisa.
Em 2005, num artigo para a revista de teoria da arte ArteTeoria, a autora Luísa Alexandra citava O’Flaherty, definindo o artista como “aquele que sonha « (…) mas aprende a controlar [o sonho] activamente, a transformá-lo num objecto material que todos podemos ver e tocar. Em vez de apenas contar o seu sonho, o artista exibe-o e arrasta-nos para o interior da sua experiência de uma maneira que, habitualmente, só está à disposição dos não artistas quando estão apaixonados»”. (Alexandra, 2005:199)
Assim, e de forma mais completa, o conceito de artista define-se não só como o individuo que assume o papel de criador de objectos artísticos, mas também daquele que os cria porque domina um certo tipo de linguagem e conhecimento, bem como o savoir faire – o manuseamento de determinadas ferramentas conceptuais – que, não só o habilitam para o fazer, como validam o seu trabalho enquanto produtor de objectos, conceitos e discursos artísticos.
Uma vez que já passaram em revista alguns dos instrumentos conceptuais da criação artística contemporânea, convoca-se o conceito de saudade – o conceito que será encarado como componente primordial da identidade portuguesa e que, como tal, teria uma forte influência na identidade do indivíduo artista, bem como seria um importante vocábulo, referente, representação componente descentrada, nas obras criadas na contemporaneidade artística portuguesa. Passemos ao conceito de saudade.

O conceito de saudade surge, no contexto desta pesquisa – e como já foi antes referido –, como vocábulo primordial da identidade cultural portuguesa e, como tal, como suposto vocábulo primordial da identidade individual do artista português.
Assim, saudade define-se logo de início como portuguesa. E define-se assim, não porque o sentimento seja exclusivo – o sentimento de perda ou de falta de algo é comum a toda a raça humana –; contudo, a forma de o experienciar torna-se uma característica marcante do povo português.
Invocando uma vez mais o autor Eduardo Lourenço, o conceito de saudade é definido como um sentimento de carácter mitológico, ou seja, propõe a mítificação do objecto de desejo. E isto porquê? A saudade portuguesa não se resume somente a um forte sentimento de perda, ela incorpora em si um outro sentimento, tão ou mais forte, de esperança de recuperação do objecto[2] perdido.
Deste modo, o conceito de saudade define-se como uma mistura das noções de nostalgia e esperança, como um sentimento de perda que baseia um forte sentimento de retorno. Porém, não poderia ficar de fora um outro aspecto, um pouco mais analítico e deveras mais interessante, deste conceito. Sendo ele a união entre dois opostos, e ponte entre um passado e um futuro, ele define-se também como um instrumento de manipulação do tempo; manipulação essa que poderá ser mais ou menos consciente. Este conceito promove a anulação do tempo presente como algo relevante, e transforma-o num simples processo de trânsito entre o passado, onde reside o objecto perdido de desejo, e um futuro pelo qual se anseia, no qual o objecto de desejo volta à posse do individuo. Assim, saudade é manipulação do tempo, de desejos, da dimensão onírica da identidade portuguesa; é a construção de um passado ficcionado, legitimadora de um futuro, justificante de um presente, e que transporta a dimensão imagética da identidade cultural de um povo para a dimensão real e quotidiana da mesma.
Resta-nos finalmente a definição de um último conceito – outro fulcral para o desenvolvimento deste trabalho –, e que justifica a sua presença a partir do conceito de saudade, visto que este é comum ao povo português, e transversal a várias áreas da esfera social: o conceito de memória colectiva.

[1] Ana A Manda – Os filhos da rede, I.I.C.T. – Ministério da Educação, Lisboa, 1989.
[2] O termo objecto assume aqui o papel de referente a um desejo. Esse objecto poderá tomar a forma de um outro indivíduo, local, contexto social (politico, económico, artístico, etc.).

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