Sunday, April 27, 2008

...das identidades (take #17) Gravador nº1: Tempo (1ª parte)

Citando Korzybslsi, William Burroughs descreveu o ser humano como «o animal que encadeia o tempo»[1].
A bem da verdade, e se Burroughs quisesse ter sido especialmente correcto, não teria definido o ser humano como o animal que encadeia o tempo, mas mais como o animal que encadeia acontecimentos no tempo. E isto porquê? Porque na realidade, o tempo nunca poderá ser encadeado – ele não pára, não se transforma, e não se molda à nossa vontade; jamais o poderemos encadear a nosso belo prazer. Ele é sim, a base sobre a qual assenta o encadeamento de acontecimentos que vão construindo a história politica, económica, artística, enfim do mundo, á medida que ele (o tempo) avança.
Não é novo que o tempo, enquanto medida, se trata de uma construção cultural de bases científicas – construção de uma medida que cronometra os movimentos de rotação e translação do planeta terra.
Não é novo também que o tempo, enquanto conceito, é uma construção cultural – só assim se justificariam as diferentes noções de tempo, de utilidade do mesmo, das diferentes divisões e regências que este promove no decorrer de um dia ou de um ano.
Porém o que não me parece ser tão óbvio, é que esse mesmo conceito de tempo é hoje – seria falacioso afirmar convictamente que tal processo cognitivo ocorra conscientemente desde sempre sem a ajuda de qualquer tipo de dados – um conceito duplo, ou melhor de dupla utilização.

Na obra “How Societies Remember”, Paul Connerton – cujo trabalho se desenvolve á volta dos temas da memória e do tempo –, conceptualizou a memória em três tipos distintos: memória pessoal, memória cognitiva e capacidade de reprodução performática (habit-memory); sendo que as que mais nos interessam serão o primeiro e último tipos.
No primeiro caso – memória pessoal –, a tipologia refere-se a um tipo de memória localizada e referente ao passado individual, bem como à percepção da influência desse passado no estado presente. Por outro lado, a habit-memory é uma tipologia que se refere a um presente sedeado num passado esquecido; ou seja, uma acção cujo referente é inexistente se tivermos em conta que foi esquecido. A habit-memory será então nada mais do que um hábito, e quanto mais esquecido ou remoto, for o seu referente original, mais será um hábito – algo que se faz além da vontade, algo que se pratica sem qualquer tipo de questionamento, uma espécie de acção dogmática.

O que interessa reter disto tudo: se tivermos em linha de conta esta conceptualização da memória de um individuo, logo de imediato é perceptível o seu potencial para o conceito de tempo.
Assim, temos que o tempo é hoje – para além de uma construção teórica, cultural, cientifica, conceptual, etc. – um hábito, daí a duplicidade que assume na actualidade. O tempo passou a dividir-se em dois: um tempo habitual, um tempo quotidiano, um tempo onde não há acontecimentos relevantes, um tempo que não faz história e, por outro lado, um tempo conceptual, um tempo que pode ser moldado pelo discurso, um tempo que pode ser moldado pela vontade, pela arte, pela politica, etc. Este tempo faz história, este tempo é história, da qual fazem parte processos activos de construção de mais história, e de mais tempo.

É importante referir que o tempo conceptual, jamais deixará de ser o mesmo tempo construído e matemático do tempo habitual – na realidade nunca poderão existir dois tempos, contudo esta separação existe, tanto como existe uma separação entre o corpo e a mente. Não são a mesma coisa, mas jamais serão coisas diferentes.
A bem das convenções, digamos que se trata de um sector de tempo que é manipulável, que se pode estender, retardar, regredir; na realidade o conceito de tempo será tão existente como o conceito de qualquer outra coisa. Eles existem sim, mas terão a forma que lhes dermos, como uma obra de arte.
Será neste ponto que invocamos a partícula central da definição de memória de Paul Connerton: memória cognitiva, cuja função será a atribuição de uma forma à memória pessoal por via de um qualquer virtuosismo técnico e/ou tecnológico – codificação semântica: organizadora de uma hierarquia de acontecimentos no tempo, que lhes atribuirá determinada relevância e, segundo esta, uma colocação na história; codificação verbal: transposição da organização para a fala ou o texto visando a informação da hierarquia a quem a ela pertence; e finalmente (e a que mais nos interessa do ponto de vista temático) codificação visual: o trabalho de transformação de toda a informação acerca de uma hierarquia de acontecimentos, num objecto abstracto, conscientemente construído, eminentemente conceptual, e passível de interpretações várias. Ou seja, será através da cognição que serão expressas memórias pessoais e habituais – misturadas e remisturadas, obedecendo a uma série de preceitos culturais acerca da percepção, e estruturantes de uma maneira de produzir esses objectos: teoria e técnica artística.
Como já referido acima, todos estes aspectos deste tempo que é conceito plástico são produto de processos activos dos quais resulta a moldagem pretendida.

Antes de passar a explanar esta afirmação, parece importante ressalvar que tal como as codificações, estes processos activos, bem como as tipologias sobre a memória e sobre o tempo, pretendem ser conceptualizações sistematizadas, e não uma realidade observável em gestos, ou práticas, evidentes a qualquer individuo se não as indagar; bem como ressalvar que maior parte destes processos e divisões se processam a um nível imagético e cognitivo.

Retomando.
A partir desta noção plástica do conceito de tempo, este tempo que se constrói que se manipula e se molda, podemos passar a enunciar os processos pelos quais ele se transforma, se detém e se multiplica.
Na realidade, e a bem da verdade concreta, este tempo não se multiplica matematicamente, ele é simplesmente distribuído por todos os indivíduos de uma comunidade – mais ou menos alargada – e que, como tal, passa a ser vivido de diferentes e variadas maneiras por cada um deles.
Assim o acto de recordar começa por ser um dos, senão o principal processo activo de manipulação do tempo. Ou seja, no acto de recordar está contido o virtuosismo de construção de narrativas identitárias de um indivíduo; de modo que nesse acto se produzem tempos diferentes: cada narrativa será paralela em relação a uma data de outras construídas por outros indivíduos da comunidade desmembrando esse tempo habitual numa panóplia de tempos conceptuais – de tempos com história, de tempos que farão a historia de cada individuo, e no seu conjunto da comunidade em que estes se encontram inseridos.

Por outro lado, outro dos processos activos de partição do tempo habitual, serão as praticas corporais: as performatizações do passado por cada individuo, ou pela comunidade. É sempre preciso ter em linha de conta que muito do tempo habitual de um individuo é partilhado com outros, e que dessa maneira – e embora as narrativas individuais possam ser dispares em relação a pormenores que advirão do gosto ou da sensibilidade de cada um – as narrativas construídas possuíram pontos de contacto entre si. Os indivíduos que, no tempo, inscreveram um acontecimento podem tê-lo feito de forma diferente, mas como resultado obtiveram sempre a inscrição de um acontecimento no tempo, a construção de uma narrativa.
Assim, a performatização dessas narrativas será sempre um processo activo de transformação e construção de um outro tempo: obedecendo a noções de ritmo, estrutura e relevância.

Verónica Metello escreveu na sua tese: “O discurso acerca da performance assenta na impossibilidade da reactualização de um particular sistema relacional.”, e citando Peggy Phelan escreveu ainda: « (…) uma performance pode ser repetida, mas esta repetição define-a como ‘diferente’.»[2]. (Metello, 2007:1/14)

Toda e qualquer performatização, ou ritual, assenta na repetição de algo que já antes se encontrava inscrito na linha do tempo como um acontecimento. Contudo, e como descrito acima, a repetição de um acontecimento – a sua performatização – impede logo à partida uma igualdade entre a performance e a realidade a que se refere; a impossibilidade de reactualização de um sistema relacional particular, impede que a performance seja exactamente o acontecimento; ela é repetida, mas tornada diferente por se realizar num outro sistema relacional, diferente no tempo. Ou seja, aquilo que se preserva através do tempo, não são tempos passados – habituais ou conceptuais – mas sim versões de tempos conceptuais passados, representações de acontecimentos inscritos encenadas por, e para o próprio individuo através de tecnologias conceptuais, físicas e/ou cientificas[3].

Deste modo, a performatização de acontecimentos inscritos no tempo, bem como o acto de recordar, tornam-se virtuosismos cognitivos para a construção de um ou mais tempos, determinando a construção individual deste tempo conceptual, assim como a construção de um tempo comum a esses mesmos indivíduos que, na sua construção individual, utilizam elementos constitutivos desse tempo conceptual mais alargado – e que, como tal, o tornam comum entre todos[4].

- «» -

São então estes os principais processos activos pelos quais é possível manipular o tempo – manipular a sua velocidade, a sua pluralidade, a sua estrutura, o seu ritmo. Mas serão eles universalmente utilizados como formas de produção de tempos conceptuais, serão eles sempre um processo conceptual? De que forma poderão estes processos intervir na vivência do tempo num universo como o português?


[1] BURROUGHS, William, “Feedback de Watergate para o Jardim do Éden” in A Revolução Electrónica, Mediasat, 2003, p.6.
[2] PHELAN, Peggy, Unmarked – The Politics of Performance, Londres, 1993.
[3] São aqui tidas como tecnologias: os sistemas ideológicos que baseiam a produção de objectos abstractos, as técnicas corporais que os representam, e/ou os meios técnicos que suportam a representação. M. J. Horowitz define estas tecnologias como categorias de pensamento que informam a performance de um acontecimento inscrito: pensamento visual – imaginário visual e capacidade de reconstituição da experiência sensorial; pensamento verbal – aspecto que se prende com a palavra escrita ou falada; e pensamento de acção – dimensão quinésica da expressão de uma memória, movimento.
[4] É preciso, aqui, ter em linha de conta a noção de geração como forjada por Paul Connerton: a memória constrói-se no tempo, e no seio de determinado grupo; assim, será normal encontrar diferenças de relevância para um mesmo acontecimento entre as diferentes gerações (grupo circunscrito com base na utilização da idade como critério determinante). A distância entre as gerações – associadas ao grupo social a que se pertence, bem como ao género – pode promover, ou destruir, a formação de uma corrente de memória comum. Ou seja, o alongamento (ou encurtamento) do tempo pode comprometer a consistência de uma identidade comum. Contudo, este factor – ainda que determinante – não é o único a ter em linha de conta, é preciso considerar também as práticas habituais (habit-memory), bem como a distância cultural.
[Imagem: 'Materiais Diversos' de Tiago Guedes (2006)]

Labels: , , ,

0 Comments:

Post a Comment

<< Home