Monday, May 05, 2008

...das identidades (take #18) Gravador nº1: Tempo (2ª parte)

Tanto no estudo de caso sobre António Dacosta[1], apresentado por Michelle Rocha, como no trabalho sobre o sentimento de saudade de Eduardo Lourenço, o tempo português é unanimemente categorizado como mítico.
No primeiro caso – e tendo em linha de conta que se trata de um trabalho de teoria da arte e não de um trabalho sobre as questões sociais levantadas pela produção de determinada obra –, Michelle Rocha inscreve o trabalho de António Dacosta num tempo mítico, sem a apresentação de maiores desenvolvimentos teóricos. Contudo, refere inúmeras vezes as questões de manipulação do tempo conceptual (explanado acima) associada ao términos da vida física do individuo, bem como as noções de perda e regresso[2].
Por outro lado, o filósofo Eduardo Lourenço aprofunda estas questões, de forma mais desenvolvida no seu trabalho sobre o sentimento de saudade, adicionando-lhes as noções de ficção, mutação, desejo, reinvenção e ausência/fuga de/ao devir.

Como referido anteriormente, os diferentes tempos conceptuais – elaborados por cada indivíduo – têm como base um acontecimento comum, que unirá pela memória os indivíduos de uma comunidade, ou sub-comunidade. Porém, os graus de relevância entre acontecimentos são atribuídos por oposição entre si; ou seja, é na comparação que se obtém o grau de relevância de uma memória, e/ou acontecimento, e subsequentemente do seu grau de protagonismo na narrativa identitária de um indivíduo.
Contudo, no caso especifico da construção temporal portuguesa, esta oposição que forma a narrativa identitária é de tal maneira forte que maior parte das memórias que intercalam as de maior relevância são absolutamente esquecidas[3]. Assim, a construção conceptual de tempo para um indivíduo português pressupõe que nele só existam acontecimentos inscritos de elevado grau de relevância, e que as restantes memórias que compõem a narrativa identitária sejam esquecidas de forma performativa e simbólica.
Por outro lado, esta característica desta forma de viver o tempo promove um abrandamento no passar do tempo, bem como a ausência de mudança no seu decorrer. Mais á frente será apresentado o conceito de saudade, por agora basta referi-lo como ferramenta de manipulação temporal.
Como se sabe, o sentimento de saudade – muitas vezes referido como típica, e exclusivamente, português – refere sempre a um passado, mais ou menos longínquo. Porém o que não é obvio, é a sua referencia também a um futuro, tão ou mais distante do que o passado a que se refere. Assim, e como já referido acima, o conceito de saudade pressupõe a perda de um objecto de desejo, bem como a esperança na sua recuperação, no seu regresso.
Esta manipulação, ou jogo, entre temporalidades – bem como a forma como é construído com base num único critério de relevância –, resulta numa anulação conceptual do momento presente: o presente passa a ser apenas um espaço de trânsito entre o passado e o futuro, entre a perda do objecto de desejo e o seu retorno. Assim, a única oposição de maior relevância, não se dá entre acontecimentos passados, mas antes entre o passado e o presente, entre o presente e o possível futuro.

Tanto Eduardo Lourenço, como Michelle Rocha – um analisando obras de caris literário, outra analisando obras de caris pictórico –, nos dão conta deste facto através da temática do término, da morte física do indivíduo. Ou seja, esta continuidade temporal em que o presente não passa de um momento transitório entre outros dois de maior relevância, é uma forma simbólica de anulação desse mesmo término – de forma mais ou menos consciente, procura-se atrasar a morte.
Patrícia Portela, quando confrontada com as questões sobre a passagem do tempo, diz: “É uma lógica de tempo feita para o término: é o ano 2000, é o fim do mundo, é o fim do ecossistema, é o buraco do Ozono… É tudo para o fim, ninguém nos formata para o princípio… (…) nós sentimo-nos sempre no limiar de qualquer coisa… Até porque estamos sempre a prever o fim do mundo, não é? Desde sempre… Aliás a história do Paraíso é mesmo essa… Que acabou o Paraíso… Nós começamos uma historia que acabou… Com uma coisa que acaba… É um bocado esquisito…”[4].
Se pensarmos bem, e tivermos em linha de conta a conceptualização de saudade feita por Eduardo Lourenço, podemos afirmar que esta formatação para o fim existe realmente, mas que esse fim não é um fim total, ele é antes um novo principio: a recuperação do objecto de desejo nunca é certa, nunca é definitiva – a partir do momento em que torna presente, ela é tão transitória como o próprio presente.

Por outro lado, surgem outras perspectivas que validam também esta maneira portuguesa de construir o tempo. Exemplificativa seria a postura de Miguel Bonneville, quando confrontado com a questão sobre o medo da morte: “eu tenho tido algumas conversas (…) sobre o facto de eu criar e estar sempre a criar… E no fundo estar a criar uma história paralela onde eu também posso ver… Porque no fundo eu acho que não gosto muito de viver, não acho piada nenhuma a isto… E acho que o Miguel Bonneville, e a loira, e o Blackbambi, e essas coisas todas que vão aparecendo, são mesmo para me obrigar a ficar aí, e a continuar, e para não pensar muito… Porque é super aborrecido, e é chato… São mecanismos de sobrevivência…”[5].
Ou seja, os processos activos de criação de tempo, são exactamente isso, o retardar de um momento final, por qualquer que seja a razão do seu acontecimento, voluntário ou involuntário.

Deste modo, alcançamos o outro patamar da multiplicação do tempo: a performatização de acontecimentos inscritos.
Partindo deste ideia de mecanismo de sobrevivência, com que Miguel Bonneville veste o processo activo de performatização – e sobretudo se tivermos em linha de conta a referência a personnas concebidas por este criador –, podemos afirmar que se assiste a um processo de reinvenção de memórias no decorrer da performatização dos acontecimentos. Assim, e contrariamente ao que se poderia predizer, esta forma portuguesa de construir o tempo, não é paradoxal em relação à afirmação de Peggy Phelan – o facto de existir uma anulação conceptual do passar do tempo, não torna automaticamente as performatizações de acontecimentos nos próprios acontecimentos; porém, também não se pode falar de uma referência a um passado, visto que este parece ser mais presente que o próprio presente. Assim, o que temos é antes uma reinvenção desse mesmo passado: as performatizações não são referentes a um passado, elas são o passado reinventado, são o passado tornado presente; elas não se referem a um passado, elas utilizam o passado para mutar e camuflar o presente, elas ficcionam-no – como num sonho.
Assim, e finalmente, a forma portuguesa de viver o tempo – e por isso referido o termo jogo, parágrafos acima –, trata-se de uma manipulação jogada desse conceito, das memórias passadas e das esperanças futuras; assumindo características quase infantis sobre a fruição do tempo, bem como características de elevada complexidade cognitiva.




[1] Pintor surrealista português. O artigo de Michelle Rocha centra-se essencialmente na produção deste criador no período da década de 50 do século XX.
[2] Também denominada, por autores clássicos, como eterno retorno.
[3] Do ponto de vista da narrativa identitária.
[4] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXXIV.
[5] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XIV.

[Imagem: 'Flatland' de Patricia Portela (2004-2006)]

Labels: , , ,

0 Comments:

Post a Comment

<< Home