Tuesday, May 06, 2008

...das identidades (take #19) Gravador nº1: Tempo (3ª parte)

No decorrer das entrevistas feitas nos cinco estudos de caso – junto dos cinco artistas escolhidos –, foram feitas perguntas que incidiam nesta temática: “Qual é a tua memória mais antiga?”, “O passar do tempo é uma coisa aflitiva?”, “Como enfrentas a tua finitude?”, entre outras que não sendo directas caminhavam nessa direcção[1].
Apesar de um intervalo geracional de considerável dimensão – 15 anos entre os dois extremos – e uma variedade de origens – desde o Norte até ao Sul do pais, passando ainda por ex-colónias, como contexto de nascimento e/ou criação –, as respostas revelaram-se muitas vezes idênticas no seu conteúdo, e inúmeras outras na forma.
Por outro lado, foi também durante as entrevistas que surgiu a divisão entre tempo habitual e tempo conceptual; porém foi também no seu decorrer que mais vezes se misturaram.

Quando confrontados com questões que remetiam para a eleição da mais antiga das memórias, maior parte destes artistas nomeia acontecimentos da sua infância ou adolescência. Contudo, os acontecimentos que se consideram mais marcantes, não se prendem com aqueles que, na sociedade em que nos inserimos, se têm como de maior relevância: rituais de passagem – entrada para a escola, terminar da formação académica, primeiro trabalho profissional, etc.
Na realidade, as primeiras memórias aferidas no decorrer das entrevistas, prendiam-se com episódios pontuais em que os momentos acima descritos serviam apenas de cenário, ou contexto; a importância destas memórias não se prende com uma vivência em sociedade, mas antes com vivências pessoais, pormenorizadas, íntimas, e de carácter onírico de elevadíssimo grau; e cuja nomeação releva muito mais de uma importância emocional, do que de uma importância social.
Exemplos disso poderiam ser as respostas de Patrícia Portela: “aos 3 anos cortei a minha mão, tenho aliás uma grande cicatriz, com uma garrafa de cerveja… Era um bocadinho precoce é um facto… Tropecei num vestido, caí em cima de uma garrafa de cerveja… Só me lembro de cair, e só me lembro de acordar enquanto me cosiam a mão… É essa a primeira memória… Não me lembro de nada entre, nem antes, nem depois, nem coisas chatas, nem de sangue, nem de dor, de nada… Só me lembro de cair e acordar a coserem…[2]”, Miguel Bonneville: “eu baralho um bocado assim as idades, quando eu era mesmo pequeno… E às vezes há coisas que eu acho que me lembro, mas é de me terem contado e eu ter criado uma imagem qualquer… Mas, não sei, acho que era para aí quando eu tinha 3 anos e fiquei a chorar imenso tempo…”[3], ou Tiago Guedes: “ (…) quando era miúdo era muito ligado às coisas manuais, às coisas de bricólage e assim… No colégio das freiras nós aprendíamos de tudo: a serrar, a cortar, a bordar, e eu gostava bastante… Mesmo em casa, tenho varias fotografias, de quando era pequeno, a fazer esse tipo de trabalhos…”[4].
Estas respostas são bastante exemplificativas do que se dizia acima – os conteúdos diferem, as situações, contudo o contexto cronológico é em tudo semelhante: infância, adolescência, momentos de certa intimidade e cujo valor reside muito mais na emoção do que no social. Por outro lado, e em particular se pensarmos no discurso de Miguel Bonneville, este é também exemplo do que acima se dizia sobre a forma como se joga com o tempo: “eu baralho um bocado assim as idades, quando eu era mesmo pequeno… E às vezes há coisas que eu acho que me lembro, mas é de me terem contado e eu ter criado uma imagem qualquer…”.
Neste ponto, podemos confirmar a existência de aspectos infantis – isto porque, mesmo quando não aferido por perguntas directas, foi inúmeras vezes referido os períodos da infância e da adolescência como marcantes na formação dos interlocutores, muitas vezes ligados ao sentimento de saudade – sobre a fruição do tempo: este jogo entre passados que se confundem, e entre aquilo que vivemos e reproduções performativas daquilo que vivemos. Até porque o que interessa na construção temporal portuguesa, não será tanto o quando aconteceu, mas sim o facto de ter acontecido e as circunstâncias em que determinado acontecimento se dá.

No que toca à passagem do tempo, é neste ponto que surgem as maiores dificuldades de divisão entre um tempo habitual e um tempo conceptual: eles separam-se em sistema, porém remisturam-se na vivência.
Inevitavelmente, e muito devido ao posicionamento profissional destes artistas, o tempo habitual (ou particular) confunde-se com o tempo conceptual (ou geral), uma vez que também se funde a vivência quotidiana com a vivência artística: elas intercalam-se, completam-se, alimentam-se e coexistem.
Do tempo, Rogério Nuno Costa disse: “Acho que temos pouco tempo para viver… Houve alguém que disse… Acho que era português… Que entrou numa biblioteca e ficou muito deprimido porque percebeu que não tinha tempo para ler os livros todos… Tempo de vida… E eu tenho muitas vezes essa sensação, não em relação a coisas exteriores a mim, mas em relação a coisa que eu quero muito fazer, sinto que não terei tempo de vida suficiente para fazer aquilo que quero…”[5], enquanto Ramiro Guerreiro afirma: “É uma inevitabilidade, não há nada que possamos fazer contra isso, por isso quanto menos nos afligirmos melhor… Não é procurar esquecer tudo o que passou, não tenho nada essa visão das coisas… Não é viver um dia de cada vez e ir sempre em frente e esquecer o que aconteceu antes… Não é nada disso… Mas não há nada a fazer quanto a isso… Não me diria que me aflige o passar do tempo, mas há tempos passados que me interessam bastante”[6]. Tal como este dois criadores, também P. Portela e M. Bonneville afirmaram não se tratar de uma coisa aflitiva do ponto de vista particular, porém aflitiva do ponto de vista geral, no caso de Patrícia Portela.
Será exactamente neste ponto que se torna fulcral a divisão entre os dois tempos, mas também onde eles mais se fundem. A passagem do tempo é assertivamente referida como algo inevitável, e como tal a sua fruição é encarada com naturalidade; porém, o passar do tempo enquanto sucessão de acontecimentos, torna-se mais veloz do que o anterior, e como tal mais curto. Por outro lado as razões referidas, pelos diferentes artistas, para justificar essa aflição não diferem consideravelmente em conteúdo – a formatação para o fim (anteriormente referida), bem como questões teóricas acerca do tempo (debate aceso e actual), e as referências a projectos futuros são indicadas como as principais justificações. Porém estas questões acabam por se entremear com o tempo particular, uma vez que as questões associadas às noções de projecto e teoria se encontram intimamente ligadas ao desenvolvimento do trabalho destes diferentes artistas.

Porém, destas três questões a que se revelou menos óbvia foi a que inquiria sobre o medo da morte – física ou artística.
Esta questão, trabalhada nos textos de Eduardo Lourenço e Michelle Rocha – como referido no início do capítulo –, revelou-se intimamente ligada ao conceito de identidade, para além do mais óbvio conceito de temporalidade.
Afirmo isto porque, uma vez confrontados com a questão “Como enfrentas a tua finitude?”, cinco artistas dizem enfrentar a sua finitude física sem problemas filosóficos de maior. Quando confrontados com as questões ligadas a uma morte artística, as respostas dadas variam entre os pólos positivo e negativo. Contudo, o que realmente me parece mais relevante é o facto de muitas vezes, a ausência de medo da morte física ser justificada com questões artísticas: “mim a morte e as questões relacionadas com terminar alguma coisa são questões muito simples… Sei que um dia hei de morrer, não quero morrer em sofrimento mas quero morrer… (…) Quanto a terminar artisticamente, vejo isso também muito bem porque eu sou coreógrafo, mas podia ser outra coisa qualquer… Ou seja, eu sou coreógrafo porque o contexto me levou para aí, mas eu tenho muitos outros interesses…”, diz Tiago Guedes[7]. Por outro lado Patrícia Portela afirma: “ [a morte artística] aflige-me muito mais, e isso eu consigo imaginar… Mas também consigo imaginar não dar por isso, ou não querer dar por isso… (…), e não encaro nada bem, mas… Aliás, acho que o próximo é sempre o último… O melhor é aproveitar, porque depois não vem mais nenhum…”[8]; assim como Rogério Nuno Costa e Miguel Bonnille apontam a crença numa arte em sociedade – enquanto houver mundo á sua volta, haverá com certeza coisas para dizer, mensagens a passar –, e Ramiro Guerreiro fala de um prolongamento da existência de um individuo através da sua obra.
Ou seja, as respostas a esta questão pareceram-me deveras interessantes, porque para alem de misturarem mais uma vez a divisão entre tempo habitual e tempo conceptual (forjada pelos próprios), elas misturam de igual forma uma outra divisão, aceite ou anulada pelos próprios, entre arte e vida. Creio ser possível fazer esta afirmação uma vez que, dos cinco artistas, nenhum apresentou razões para o medo, ou a sua ausência, sem ser através das questões artísticas ligadas à sua existência.
Sem grandes desvios, e talvez avançando uma questão particularmente identitária, parece-me importante referir esta ligação a um outro conceito – subjectivo e algo fora do contexto deste trabalho, mas que me parece de extrema importância para a percepção de certas questões –, o conceito de utilidade. Assim, parece-me plausível afirmar que tal como o jogo (acima referido) podia aumentar, ou encurtar, o tempo conceptual de um indivíduo, ou comunidade, também a construção identitária baseada na utilidade do individuo na sociedade parece estar associada a essa manipulação do tempo – manipulação essa que, como referido acima acerca do adiamento do término, parece tender sempre para um alargamento do tempo, ao invés de um encurtamento. Resta então dizer que através do seu prolongamento, e apesar de se entremear com o tempo habitual durante o tempo de vida física do indivíduo, o tempo conceptual do mesmo estende-se para além desta existência carnal através da sua obra – associação importante com as noções de memória e legado.


[1] Consultar anexos p. I a XXXVII.
[2] Para consultar da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXXII.
[3] Para consultar da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XIV.
[4] Para consultar da entrevista na íntegra, consultar anexos p. IV.
[5] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXII.
[6] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXVII.
[7] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. VII.
[8] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXXVI.
[Imagem: 'Fui - Esboço Plástico' de Rogério Nuno Costa (2006)]

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