Thursday, October 18, 2007

...das identidades (take #2) [mais que atrasado]



Assim se levanta a questão – de que modo poderá o indivíduo destituído de vida manter a sua liberdade? E será plausível, hoje em dia falar ainda de uma serenidade artística? E numa visão mais geral; até que ponto poderá um indivíduo ser destituído de vida? E no final das contas, que vida será essa? A sua vida imagética, a sua vida social? Será que é privado de uma vida social livre, e por isso absolutamente livre na sua vida imagética? A tal ponto que a manipulação do tempo seja absoluta e completamente à mercê da sua vontade?

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Quer perceber-se, a partir das questões temporais, e identitárias a elas ligadas, qual a função social da arte contemporânea, daquela que se produz enquanto escrevo este texto. Perceber qual o nível de consciência dos criadores portugueses dessa função; e a tê-la (à função), se ela é impressa na peça artística de forma consciente ou contingente. Em última análise, perceber de que maneira o artista se forma enquanto indivíduo (identitariamente) na sua prática artística, e de que forma as suas experiências anteriores – não necessariamente artísticas –, influem no modo de produzir arte – que dialéctica existe entre a sua memória individual, e colectiva, e as obras que cria.

Existem, assim, três grandes focos de análise: a identidade, a produção artística e o tempo (enquanto eixo transversal a estas duas dimensões).
O objectivo será então, traçar (ou destruir) a ideia de que existe uma identidade artística contemporânea portuguesa – não se tratando necessariamente de vivências comuns, mas antes de justaposições de graus de importância atribuídos a certos acontecimentos, e certos momentos da vida do artista, etc. –, ainda que essa ideia comum entre todos seja a da destruição de uma ideia ancestral que os una como um todo homogéneo.

Parece-me também importante definir desde já o que aqui se entende por artista: artista será muito mais do que aquele que pratica a arte, será (a bem da sistematização) aquele que a cria; e como tal, cuja obra sofrerá uma maior e mais directa influência da sua memória individual e colectiva.
Assim pretende-se o estabelecimento, através de leituras teóricas, entrevistas a criadores (das áreas da performance, artes plásticas, teatro e dança) e visionamento de vídeos e obras, de pontos comuns na produção dos objectos artísticos de cada área; pontos comuns que podem, ou não, definir uma identidade artística contemporânea portuguesa.

De fora foram deixadas as áreas da literatura e da pintura (esta última num sentido mais clássico) devido ao carácter perene das obras resultantes: ainda que hoje em dia, tal como na escultura e no vídeo, o processo seja de extrema importância na criação pictórica e também ele de índole performativa.
Esta exclusão deve-se então a uma verdadeira dificuldade (para não dizer impossibilidade) de definição do início exacto de um uso do gesto pictórico consciente e performativo, ao invés de um processo inconsciente que possuía unicamente como objectivo o deleite estético.

Assim, a inclusão de áreas como a escultura e o vídeo, cuja perenidade é também característica, é feita com base no conceito de mecanismo performance: conceito que define a criação artística enquanto performática, se é consciente do processo, se o trabalha, e se a mesma consistir num descentramento e posterior re-centramento simbólico das formas utilizadas – ou seja, um mecanismo cognitivo do campo da imaginação que permite a atribuição de novas e renovadas significações a um signo preexistente (este conceito será mais aprofundado à frente).

Por fim, resta referir que a escolha destas áreas de acção artística não foi feita sem qualquer tipo de intenção.
A escolha destas áreas de produção artística, foi feita devido ao seu carácter escorregadio, especialmente se tivermos em conta a questão do tempo.
Assim, as áreas de produção artística são escolhidas devido a uma máxima implicação, não só do indivíduo criador no processo artístico – uma implicação física consciente e actuante, transformadora –, como também uma implicação do próprio espectador da obra (ainda que o consumo seja relegado para segundo plano neste trabalho), e como tal, a uma maior propensão para a construção/reconstrução/destruição de estruturas, ou parte delas, identitárias; bem como, devido ao seu carácter processual e temporário, essa construção/reconstrução/destruição relevará de um tempo, de uma memória subjacente ao acto e que o define, e o guia.
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Alfred Gell teorizou, como metodologia para a antropologia das artes, o conceito de filistinismo metodológico. (Rampley, 2005:530)
Este conceito, forjado por Gell durante trabalhos junto de habitantes de aldeias da costa africana e ilhas do pacífico, consiste – essencialmente – numa atitude face aos objectos artísticos: a sua apreciação intelectual. (Rampley, 2005:530)
Ou seja, a peça produzida passa a ser descreditada esteticamente, passando a assumir uma função social – é encarada como um agente, nomeadamente como um agente social de encantamento. (Rampley, 2005:531)
Assim, o que Gell propõe é o estabelecimento de um princípio heurístico de interpretação; ou seja, uma ferramenta conceptual decompositora do todo de um objecto artístico em elementos formais simbólicos – também denominados por Verónica G. Metello por representações componentes descentradas. (Metello, 2007:--)

Neste trabalho, as noções metodológicas para a antropologia das artes avançadas por Gell são utilizadas; contudo, são-no de uma forma crítica.
No decorrer do texto serão referidos trabalhos dos artistas envolvidos no mesmo, e como tal serão inúmeras vezes decompostos em representações componentes descentradas, a bem de uma melhor compreensão das obras. Porém, esta decomposição relevara somente da sistematização possível num trabalho que vai de encontro à interpretação das obras; ou seja, os objectos artísticos serão decompostos para, posteriormente, serem reconstruídos e interpretados à luz das alianças ou separações que se criem entre os diferentes elementos que o compõem.
Tal facto fará também com que a atitude filistina, referida por Gell, seja usada com um limite definido conceptualmente: a obra é encarada como um agente social, mas também como um agente estético, pois muitas vezes será na componente estética que residirá a força de determinados objectos artísticos.
Por outro lado, e apesar da perspectiva crítica com que é utilizado, Alfred Gell justifica a sua presença neste corpo de texto a partir do momento em que, referindo a estrutura triádica da significação da realidade de Pierce – símbolo, ícone, índice –, remete a obra de arte para o conceito de índice, bem como para a noção de magia. (Rampley, 2005:535)
Podemos afirmar então, tal como Gell o fez, que a arte é magia – e que actualmente é a magia das sociedades modernas contemporâneas –, e que variadíssimas vezes, tal como na magia primitiva o executante é alvo da própria execução, remete para o próprio individuo que a cria.

Assim, temos que a arte é um agente social e estético de encantamento e que – como é do interesse primordial deste trabalho – é circular: produzida por um individuo ao qual se refere; isto é, uma obra que remete para as estruturas identitárias (criadas real e imageticamente) de carácter empírico individual ou colectivo.

Em conjunto com esta metodologia/atitude filistina de Gell face aos objectos artísticos; passamos à forma de apreensão desta atitude: o modelo de entrevista de W. Wang e K. Ishizaki (2002). (Fróis/Andrade, 2004:393)
Este modelo pressupõe a elaboração de perguntas abertas/tópicos a abordar, de modo a obter informação subjectiva sobre os componentes de representação da obra, bem como sobre a sua interpretação heurística, estética e funcional. As obras publicadas por estes autores reflectem um espírito pós moderno, dando considerável importância às noções de contexto, construção, cultural e dinâmica.
Esta dupla de autores apresenta-nos as criações artísticas como tal: como algo que é construído, social, contextual, dinâmico; porém, também como algo tecnológico – algo que se aprende a fazer, que se ensina a fazer, resultante de um processo.
Este processo é resultado directo de uma exposição à arte, ou seja, para estes autores a compreensão e apreensão – e por conseguinte a sua criação – da arte é atingida mediante um tempo (mais ou menos intermitente) em que o criador executa, se expõe ao objecto artístico, e à sua influência.
Assim, a ideia que os autores parecem transmitir é a de que o indivíduo é aculturado por um subgrupo cultural – como se se tratasse de uma variante formal de um idioma institucional: a variante visual.
O que transparece, e que parece fazer sentido, é a ideia de que a construção discursiva dos objectos artísticos será o indicador para se chegar a tal conclusão: ou seja, o objecto artístico é conhecido a partir do discurso que se produz à sua volta – o diálogo enquanto produtor de conhecimento e de experiência –, sendo o objecto artístico a peça central deste puzzle, e elemento conector entre cada um dos três elementos que compõem a sua experiência: objecto artístico – artista, objecto artístico – mundo e artista – mundo. Ele é um meio de comunicação e uma projecção. (Fróis/Andrade, 2004:394)
É com base nesse pressuposto que esta é a técnica utilizada neste trabalho.

Estas entrevistas foram levadas a cabo em local escolhido pelos criadores, e tal como apresentadas por W. Wang e K. Ishizaki, baseiam a sua estrutura segundo um grau de entendimento estético (e por contingência social e funcional) das peças criadas: nos casos apresentados, um grau de elevado nível devido à posição dos interlocutores: artistas.
Tal como as áreas escolhidas, também os artistas que as representam não foram escolhidos ao acaso: todos eles nascem entre o início década de 70 e a primeira metade da década de 80; ou seja, a geração que mais absorveu a herança Duchamp’iana que primeiramente foi trabalhada em Portugal (década de 80), e como tal, também a geração que, com mais veemência, abraçou ou repudiou essa herança na sua produção artística. São eles também, quem produz hoje com uma maior frequência, apesar de um contexto político, económico e social mais adverso á produção artística. São eles também que, numa época de maior globalização, mobilidade e mútuas e múltiplas aculturações, se vêem a braços com profundas questões identitárias, e de gestão de igualdades e diferenças.
Deste modo, e de acordo ainda com a teorização de Gell, pretende-se apreender através desta técnica, e partindo da interpretação formal e teórica dos objectos artísticos, as várias dimensões daquilo a que Alfred Gell chamou, citando Roy Wagner: pessoa fractal. (Rampley, 2005:538)
Em suma, a centralidade funcional, e informativa, desta técnica reside na produção de um discurso por parte dos interlocutores e posterior análise do mesmo – análise discursiva, mediante a construção de uma grelha de análise (fig. 1).


(fig. 1)

A par deste tipo de informação – obtida na fonte produtora dos objectos artísticos –, surge como premente também a utilização de fontes documentais sustentadoras de um projecto teórico capaz, estável e fiável.
As obras – umas vezes escolhidas, outras sugeridas por referência bibliográfica – provêm dos mais variados campos: desde a teoria visual, estudos culturais ligados à comunicação, História da Arte, Antropologia, Filosofia e teoria da Arte. A base documental surge então como fundação conceptual e hipotética, para um posterior trabalho de pesquisa junto de quem produz os objectos estudados, bem como, junto de quem se relaciona com o contexto envolvente para os criar: o artista.
Estas obras documentais relacionam-se essencialmente com estruturas conceptuais ligadas à produção artísticas, às artes performativas, à construção identitária, à memória colectiva e, finalmente, à construção cultural das noções de tempo.

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