Thursday, May 29, 2008

...das identidades (take #26) Gravador nº3: Identidade (2ª parte)

Em 1989 Ruy Duarte de Carvalho definiu o processo de construção identitária como uma gestão de diferenças. Partindo de uma base interaccionista, o autor define-o a identidade de um grupo social por oposição a outros; ou seja, uma comunidade adquire a sua identidade menos por aquilo que é e mais por aquilo que não é. A identidade residiria não nas semelhanças entre uma comunidade, mas sim nas diferenças. Tal facto promove, não só a manutenção acérrima desta diferença, como também a construção de novas – ou renovadas – diferenças. Esta identidade definida por Duarte de Carvalho, é um conjunto de factores sociais, económicos, políticos, históricos, ideológicos, etc. reconhecido, não só pelos indivíduos constituintes de uma comunidade, mas também pelos indivíduos constituintes das comunidades que se opõem à primeira.
Por outro lado, e numa vertente mais individualista, o autor refere-se também ao contexto de produção de semelhanças essenciais para a pertença a determinada comunidade: esse contexto seria o familiar e doméstico, local de up bringing do indivíduo, e onde este se veria a braços com as primeiras questões identitárias – as primeiras diferenças – e onde as resolveria por mímica, por imitação de outros indivíduos já possuidores de uma estrutura identitária bem fundada e construída.
Estes seriam os factores determinantes para a criação do conceito de criatividade diferencial identitária, por Ruy Duarte de Carvalho.

No mesmo ano, Paul Connerton define o processo de criação de uma identidade como um acto de memoriação. O autor constrói uma equivalência entre as estruturas identitárias e as estruturas da memória de um indivíduo: ambas possuem uma cronologia, decorrer, bem como possuem ambas características de narrativa e de performatividade. Assim, a construção identitária de um indivíduo seria feita processualmente, com base na memória do que já foi para trás e no desejo do que se quer ser para a frente; bem como estaria em constante actualização performática – não se interpretando pelo acto, mas produzindo-se no acto.

Emília Margarida Marques, antropóloga portuguesa que se debruçou sobre as questões identitárias associadas aos espaços criativos e culturais no contexto geográfico da Marinha Grande, definiu em 1995 o conceito de identidade como um processo de negociação e resistência. Este conceito aplicar-se-ia sobretudo a comunidades, mais do que ao indivíduo em si – onde estas noções poderão ser visíveis, mas não possuem o mesmo impacto. Também estas noções, tal como em Paul Connerton, remetem para aspectos da performatividade e da memória, respectivamente. Assim, Emília Margarida Marques define a identidade como um processo de negociação ao nível da acção dos indivíduos de uma comunidade, mas também como um processo de resistência das memórias da mesma, em relação às memórias de outras comunidades. Tal como antes, também esta definição do processo de construção identitária assenta numa narrativa, num discurso identitário que se quer novo, e diferencial. Assim, o que E. Marques faz na realidade é definir o conceito de identidade como um processo de constante concessão entre aquilo que se pode ser, e aquilo que se quer ser.

Um ano depois, em 1996, Simon Firth define o conceito de identidade a partir de questões já mais artísticas: performatividade/acto, narrativa/história, ética e estética. O autor define o processo identitário como a imaginação de um eu; ou seja, uma identidade assente, mais uma vez, numa narrativa e na performatização da mesma. Contudo, Firth introduz duas novas variáveis para a apreensão de uma estrutura identitária: ética e estética. Assim, em corpo de binómio, Simon Firth teoriza sobre o julgamento estético da realidade por parte de um indivíduo como algo que revelaria a sua ética.
Deste modo, Firth insere no esquema identitário uma variável de sobeja importância: a noção de experiência. Assim, e em última análise, o que o autor propõe é uma conceptualização das estruturas identitárias como a experiência da realidade, ou como a forma de lidar com essa mesma experiência. O autor deixa assim de lado as noções de construção identitária interaccionista directa – por fronteira física –, passando para campos mais alargados e não necessariamente vizinhos, para uma construção identitária interaccionista consciente, e por isso indirecta: uma identidade definida por fronteira cultural.

Por fim em 1999 – e como exemplo final – Eduardo Lourenço, na sua definição da identidade portuguesa, define o conceito de identidade como um processo imagético de manipulação temporal. Esta manipulação incidirá essencialmente nas duas porções de tempo que não são presentes: o passado e o futuro. Deste ponto de vista, seria possível afirmar que o autor define a identidade como algo de carácter mitológico. A atribuição de tais características adviria de um tipo de estrutura comum, tanto aos dois conceitos, como às conceptualizações anteriores: a estrutura narrativa. Como resultado primordial, este tipo de definição identitária apresentara uma tentativa de prolongamento da memória da existência do indivíduo através da sua partilha por um número de outros indivíduos pertencentes à mesma comunidade, ou de prolongamento da memória de uma cultura em relação a outras.
É neste contexto que o autor apresenta o conceito de saudade: um sentimento que reuniria em si, e em cada indivíduo, estas premissas. Com efeito, e finalmente, Eduardo Lourenço define o conceito de identidade como uma estratégia de sobrevivência.

[Imagem: 'Wasteband' de Patrícia Portela (2003)]

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Monday, May 26, 2008

...das identidades (take #25) Gravador nº3: Identidade (1ª parte)

Macro. Micro. Macro.
A identidade de uma comunidade, nação ou sociedade, define-se por um qualquer grau de oposição entre as suas circundantes; porém é concebida assente num princípio de isomorfismo[1] entre qualquer indivíduo constituinte e a comunidade, nação ou sociedade no seu todo. Macro.
Contudo, e ainda que numa base de absoluta retórica ocidental, existe uma oposição entre o indivíduo e a sociedade. Micro.
Na realidade, essa oposição existira entre todos os indivíduos de uma comunidade – em maior ou menor grau –, bem como entre as diferentes comunidades de uma sociedade. Mas aos olhos dessas outras comunidades, uma delas será una – composta numa base de diversidade, ela será una. Macro. (Thomas, 1997: 257)

Pressupõe-se então a existência de um qualquer fio de ligação entre todos os indivíduos que compõem uma comunidade – assim como entre todas as comunidades que compõem uma sociedade. Será então também aceitável afirmar que o que quer que seja que os una, indivíduos ou comunidades, seja também capaz de determinar a sua divisão. Mais ainda, será razoável afirmar que, mesmo em situações de desunião, será possível apreender esse mesmo fio de ligação – que promoverá a ajuntamento em determinados sectores de uma comunidade, ou sociedade, e o afastamento noutros.

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O conceito de identidade foi já definido segundo, e consoante as exigências das diferentes correntes de pensamento vigentes, variados autores e critérios: gestão de diferenças, negociação e resistência, mitificação e sonho, entre outros. Apesar da sua variedade de naturezas ou de sectores de acção, estes critérios possuem pelo menos dois pontos em comum: pressupõem a dinâmica da estrutura identitária, apresentando-a sempre como um work in progress; assim como promove a ideia de que o processo de construção identitária – independentemente da vertente “escolhida” para a sua construção, e do tempo em que decorre, ou que demora – será comum entre os indivíduos de determinada comunidade, ou sociedade.


[1] Dumont, Essays On Individualism, 1977.

[Imagem: 'Transposição da Conversão de um Quarto de Dormir em Quarto de Trabalho 'de Ramiro Guerreiro (2006)]

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Thursday, May 22, 2008

...das identidades (take #24) Gravador nº2: Produção Artística (4ª parte)

Arte é um nome.
Arte é um processo.
A produção artística é um processo inscrito no tempo e no espaço por contingência e que, por isso, estes aspectos não pertencem a um grupo de preocupações que determinem, de início, a forma que a peça irá ter. Em Portugal, a produção artística contemporânea de índole performativa, caracteriza-se pelas componentes do processo: descentramento da realidade trabalhada e posterior recentramento dessa mesma realidade num novo campo de significação. Com isto, as peças que desse processo resultam, não se encontram estanques em significado: não são representações, são ao invés subrepresentativas – adquirem durante o processo, não um significado, mas um potencial de conecções com diferentes significados, um potencial de significação –, bem como não possuem uma linha cronológica convencional, mas sim uma cronologia altamente manipulada, que assenta num modo espiralado de encarar a temporalidade: um progresso que, assentando num passado que não reflecte, promove a criação de novos futuros, e realidades, paralelos/alternativos. Estes futuros, ou realidades, não são criados a partir de fragmentos da realidade passada, mas sim dessa mesma realidade como uma unidade coerente quando intuída de fora estética. No final, será esta intuição estética da realidade que resultará na forma que o objecto artístico irá assumir, forma essa que variará consoante o conteúdo que se pretenda comunicar. Este processo, conceptual e mecânico, será então denominado como mecanismo performance. Este resultaria num objecto artístico enunciado como arte. E arte é um nome.

Enquanto modo de produção, não será possível tirar conclusões deste processo per si. Poderá, sim, ser possível declará-lo como causal – tal como outros processos, entre os quais o científico. Será no seu resultado que poderão incidir as análises e as conclusões. Será na sua eficácia.
Arte é um processo.
Arte é um nome.
Arte é, na realidade, um meio. Tal como a estrutura identitária, a arte é um meio de produção de objectos, de realidades, de identidades; mas mais importante, a arte é um meio de produção de si mesma – arte é auto perpetuação.


[Imagem: 'Fui #3' de Rogério Nuno Costa (2005)]

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Tuesday, May 20, 2008

...das identidades (take #23) Gravador nº2: Produção Artística (3ª parte)

Uma das questões colocadas aos criadores durante as entrevistas prendia-se com a existência de um limite para o que é possível de performatizar para um objecto artístico. Curiosamente – e especialmente se tivermos em linha de conta as noções desenvolvidas pelos dois autores – nenhum dos cinco artistas respondeu afirmativamente a esta questão. Mesmo em situações em que são feitas ressalvas acerca da passagem de todos os acontecimentos inscritos num tempo habitual para um tempo conceptual, não são feitas com base num limite entre o público e privado, mas antes numa gradação de níveis de importância atribuídos a esses mesmos acontecimentos, que após o devido tratamento, comporão o objecto artístico que a eles se referirá. Por outro lado, também a cronologia é altamente manipulada: porções de realidade pertencentes a tempos passados passam a ser encarados como presentes, ou futuros próximos; assim como passados remotos passam a ser encarados como futuros próximos, ou passados bastante recentes são relegados para planos de lonjura que não lhes correspondem.

Em confronto com a questão acima referida, o criador Miguel Bonneville afirma: “Acho que não… Acho que não há nenhum limite… Acho que é uma questão de importância… É como se me pedissem para fazer agora qualquer coisa, eu ia obviamente falar sobre aquilo que mais me ocupa o tempo, e a minha vivência neste momento… E depois também acho que as coisas se vão alimentando… Vida, arte, vida, arte, vida…”[1]. Ramiro Guerreiro afirma ao ser inquirido sobre a distância entre o objecto e o seu criador: “ (…) não pode ser completamente distante… Se é uma coisa completamente distante… Não pode ser… É um acto criativo, é uma coisa que vem de ti… (...) Pode haver às vezes referências a espaços, ou vivências minhas, privadas, pessoais”[2]; complementando a afirmação de R. Guerreiro, Patrícia Portela fala de transparência: “Mesmo que tu queiras esconder, está lá sempre… Acho que tudo é um bocadinho transparente… (…) Eu acho que mesmo quando estamos a falar de outra coisa qualquer, estamos sempre a falar… (…) Estamos sempre a falar da mesma coisa, que é aquilo que tu conheces… Não podes sair de ti próprio…”[3].
Ou seja, este aproveitamento – total ou parcial[4] – da realidade vivida num tempo habitual, apesar de um aproveitamento muitas vezes total no que toca ao conteúdo, assumirá sempre uma forma estilizada[5], uma forma conceptual como o tempo a que passa a pertencer. Destas afirmações, especialmente a partir da afirmação da criadora Patrícia Portela, podemos deduzir que efectivamente não existe uma composição da realidade a partir de vários fragmentos, mas antes uma intuição estética de uma realidade particular: a do artista. Ou seja, o que existe não é uma construção total da realidade, mas sim uma espécie de atitude perante o contexto circundante que leva à produção de um discurso sobre o mesmo, e que assume uma forma estética – um descentramento de significação e um posterior recentramento: mecanismo performance. (Metello, 2007:14)
Por outro lado, e tendo em linha de conta o que anteriormente foi dito sobre a temporalidade no capitulo anterior, podemos também afirmar que não existe uma preocupação entre o estabelecimento de uma linha temporal que obedeça aos preceitos de Benjamin – passado recente, presente momentâneo, futuro como espelho do passado. Efectivamente não parece existir qualquer tipo de preocupação no estabelecimento de uma linha cronológica que date, ou inscreva, o objecto artístico; parece sim existir um decorrer processual no tempo, mas que não é específico, ou limitado. Como já antes afirmado: o passado torna-se presente, o presente passado, o passado futuro, etc. Mas mais importante parece-me ser o facto de, mesmo quando é mantida a linearidade da cronologia, o futuro não se apresentar como um espelho do passado, mas antes como a própria obra de arte: assumindo esse passado como ponto de partida, mas criando um futuro que se apresenta novo e original.
Quando inquirido sobre as dimensões identitárias do seu trabalho, sobre os limites de transposição do privado para o público através da construção de um objecto artístico – e vice-versa, ou seja, até que ponto o objecto pode também ser elemento constitutivo da identidade do artista –, o criador Rogério Nuno Costa, cujo trabalho possui dimensões temporais vincadas e utiliza a noção de eu como instrumento de trabalho, afirmou: “Não sei, não sei do que é que estás a falar… Mas parece doloroso… Doloroso, no sentido artístico…”[6]. Esta afirmação vai de encontro ao que acima se pretendia explanar; ou seja, enquanto ideia de processo temporal, a noção de aura forjada por Benjamin não parece ser suficiente para a definição da produção artística portuguesa uma vez que, mesmo quando é mantida uma linearidade cronológica, esse processo não se apresenta como um ciclo fechado, mas sim como um ciclo de espirais: uma espécie de progresso doloroso[7], ligado ao que já foi e ansiando pelo potencial do que está por vir – em última análise: a produção artística portuguesa reflectirá não o passado que a sustenta, mas antes o constante devir da temporalidade portuguesa, em geral, e do processo artístico performático, em particular.

Por outro lado, também a noção de alegoria, enquanto estrutura de representação e capacidade de salvação do esquecimento, de Owen parece ser incompleta – quando não contraditória – para uma definição da produção artística portuguesa contemporânea.
Enquanto estrutura de representação, a alegoria Owen’iana falha quando aplicada à produção portuguesa contemporânea na medida em que esta – produção artística – não possui no seu processo uma preocupação inicial no que toca à representação de uma realidade, ou de um universo. Tal facto prende-se essencialmente com a ideia de ficção.
Miguel Bonneville afirma: “Há um montes de protecções que eu tenho, que nem fui eu que as criei… O facto de eu estar a apresentar uma coisa e estar a dizer: “Sim, sim, eu ontem fui à praia e o meu avô estava nu atrás de mim!”… As pessoas podem achar que é mentira, podem achar que é verdade… Eu tenho esse lado sempre… Que nem sou eu que crio; eu posso estar a dizer a mais pura das verdades e ninguém acreditar em mim porque é um espectáculo, porque é arte…”[8], bem como Tiago Guedes, que declara: “ (…) tudo o que tu apresentes no palco é outra coisa, é outro nível: é ficção… Por mais autobiográfico que tu sejas, por mais agarrado à tua vida pessoal… Ou seja, isso é o que te pode fazer encontrar matéria, mas depois quando tu apresentas num palco, quando as pessoas vêm, tu estás num espaço que é um espaço de ficção…”[9]. Ou seja, tal como a questão dos limites de transposição, também a representação é algo que é inerente à forma que o objecto assume – assume uma forma representativa resultante da articulação de um conteúdo, técnicas de criação artística e de uma tratamento performático desse mesmo conteúdo; contudo, esse conteúdo do qual se parte não possui, à partida, uma limitação conceptual, espacial ou temporal – ele possui estas características por contingência, não por opção do criador.
Por outro lado, e especialmente se for tido em linha de conta o que anteriormente foi dito acerca do modo de encarar a temporalidade, também a vertente de capacidade de salvação do esquecimento é igualmente incongruente com a definição que se pretende para a produção artística portuguesa contemporânea. De acordo com as respostas atribuídas às questões sobre a passagem do tempo podemos deduzir que, tal como os factores acima referidos, também o esquecimento parece não fazer parte das preocupações dos artistas inquiridos.
Na realidade, o que parece ser facto – associando também a ideia de progresso doloroso – é que o que a produção de objectos promove, não será tanto o salvamento do esquecimento daquilo que se vai perder, mas sim uma espécie de esquecimento simbólico, ou seja, nas suas peças artísticas o que parece acontecer, não é a representação de uma realidade passada para que esta seja preservada, mas antes uma ritualização dessa realidade passada para que esta possa ser transposta, e passe a existir uma passagem para uma nova realidade – ainda que se baseie na anterior –, mantendo assim um constante devir, um progresso doloroso.

[1] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XII.
[2] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXV.
[3] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXXIII.
[4] O binómio torna-se irrelevante a partir do momento em que é abandonado o conceito de limite aplicado às noções de público e privado.
[5] Forma essa que será gerada a partir do conteúdo que se pretende comunicar.
[6] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XVII.
[7] Tony Kushner, Angels In America, theater script, 2004.
[8] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XII.
[9] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. V.


[Imagem: 'Miguel Bonneville #2' de Miguel Bonneville (2007)]


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Thursday, May 15, 2008

...das identidades (take #22) Gravador nº2: Produção Artística (2ª parte)

Em Portugal a vivência da temporalidade, como já antes visto, é característica vincada do povo, mas é vivida de forma muito particular.
Apesar dos diferentes pontos de vista teóricos, ou funcionais, parece existir entre os artistas portugueses uma vontade de exposição de ideias, de mostra de vivências, de mostrar como se vive determinada situação – assumindo uma postura quase etnológica.
Do ponto de vista da criação artística, o processo é algo que está na ordem do dia: a documentação da obra, o relato da obra, etc.
Enquanto momento histórico – e especialmente se tivermos em linha de conta a evolução das técnicas de captação e reprodução de imagens –, este é (há já uns tempos) um momento de reprodução mecânica. Outra vez, nada de novo.
Mas será que nos representamos? Será que nos queremos sequer representar? Enquanto povo? Ou somente enquanto alguém que pertence a um povo, mas que não se quer representar; quer memoriar os seus passos para não se esquecer de como ali chegou, mas sem parar de querer andar para a frente? Pretendemos alegorizar a realidade que nos circunda, assentando-a numa temporalidade retroactiva?
Se Portugal continua a ser considerado, ainda por muitos, um pais artisticamente adiado, poderemos nós falar de características modernas, ou pós modernas na arte contemporânea portuguesa?

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Entre o início do mês de Junho e o início do mês de Setembro do presente ano realizou-se em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, uma exposição – da responsabilidade das comissárias Raquel Henriques da Silva, Ana Filipa Candeias e Ana Ruivo – que versava sobre os últimos 50 anos, do século XX, de produção artística em Portugal[1].
Esta exposição, que albergava autores das mais variadas áreas – pintura, escultura, artes plásticas e performativas –, pretendia na sua organização dar conta, não só das obras produzidas no período sobre o qual se debruçava, como dos processos criativos subjacentes às obras apresentadas. Deste modo – e usando como principais fontes os documentos das instituições Centro de Arte Moderna e Serviço de Belas Artes –, as comissárias desta exposição apresentavam, lado a lado com as obras propriamente ditas, relatórios, esboços, projectos, etc., também eles encarados com o estatuto de obra de arte.
Numa tentativa de ultrapassar a cronologia das obras, as comissárias apostaram numa organização espacial que se prendia por temas, ao invés de uma organização espacial por áreas de acção e/ou sucessão temporal.

Este exemplo específico, apesar de pontual, parece ser altamente exemplificativo da própria produção artística portuguesa, não só nos últimos 50 anos, como também na actualidade: a ultrapassagem da cronologia se tivermos em conta a facção identitária, e a importância do processo se tivermos em conta a facção temporal do objecto artístico.

Também em 2007, é apresentada perante um júri a tese de doutoramento de Verónica Gullander Metello. Este documento revela-se de importância fulcral, uma vez que dissecaria em pormenor o modo de fazer arte – no caso especifico, de índole performativa –, em Portugal nos últimos 50 anos, e a influência de determinados processos na maneira de produzir objectos artísticos na actualidade.

Tal como no exemplo da exposição acima referido, em que as obras são inicialmente descontextualizdadas da sua ordem cronológica – para que esta surja posteriormente em planos secundários e terciários –, para ganharem novos significados a partir dos conteúdos a que se referem e das formas que assumem, também Verónica G. Metello nos dá conta de um processo muitíssimo similar na produção artística portuguesa.
É neste contexto teórico que a autora forja então o conceito de mecanismo performance, ladeado de noções acessórias, mas de importância vital, como: ritual, representação e sub-representatividade.
Estes conceitos, como já descrito acima, referem-se a um modo de manipulação da realidade, a um instrumento de criação, que se resume a uma descentramento de uma parte da realidade, para depois voltar a ser recentrada a partir de uma nova perspectiva – uma perspectiva discursiva. Em suma, o conceito de mecanismo performance refere-se a um potencial substrato sub-representativo performático existente na produção de um objecto artístico. Ou seja, um objecto artístico, no seu processo de produção é composto por diferentes representações componentes descentradas – as já referidas alegorias de Craig Owen –, que depois de ordenadas, ou arranjadas, numa forma – recentradas –, assumem para si um potencial de diferentes conexões com a realidade a partir da qual se formam os mesmos: os objectos artísticos.
Numa visão quase Pollock’iana[2], Verónica G. Metello muda o enfoque do conceito de produção artística dos resultados – objectos artísticos –, para os processos de construção dos mesmos.

Deste ponto de vista, poderia falar-se também de uma aura, como o fez Walter Benjamin – de uma qualquer qualidade da obra de arte que a define como tal, e que a remete para um contexto sem o representar, mas antes referindo-se a ele: a representação, o objecto, seria a forma que a ideia do criador assume, a alegoria; enquanto que a sub-representatividade seria a própria ideia do criador, ou o vestígio da mesma, que subjaz o objecto artístico, e a qual se pretende transmitir. Esta transmissão possuiria características rituais, uma vez que existiria uma formalidade inerente à sua apresentação; contudo não se trataria de um ritual per si, uma vez que não se trataria de uma repetição representativa de um acontecimento ancestral, mas sim de um acontecimento per si referente a um ou mais acontecimentos, ou realidades, ou a uma ou mais porções de um ou vários acontecimentos, ou realidades.

Contudo, e apesar destas possíveis e óbvias pontes entre as teorizações modernistas de Walter Benjamin e Craig Owen e a teoria que circunda a produção artística portuguesa, as noções de alegoria e aura, só são plausíveis ao nível da analogia formal. Na realidade, e em termos de acção do individuo criador, nenhuma destas duas noções teóricas cobre na totalidade a intenção da acção artística portuguesa. Tal afirmação pode ser confirmada sem outra base que não o discurso dos próprios artistas.

Partindo da noção de alegoria podemos afirmar que na presente produção artística portuguesa, o seu propósito não se trata de produzir estruturas de representação que salvem do esquecimento praticas ou rituais antigos, ou tampouco memorias mais remotas da biografia do individuo criador. Por outro lado, também a noção de aura forjada por W. Benjamin parece preencher teoricamente as intenções da produção artística, uma vez que não se procura a composição da realidade através de fragmentos soltos da mesma, ou sequer o processo de produção assume o carácter temporal descrito pelo autor.


[1] 50 Anos de Arte Portuguesa – 6 de Junho a 9 de Setembro de 2007, Fundação Calouste Gulbenkian.
[2] Jackson Pollock: teoriza o gesto enquanto agente estético.
[Imagem: 'Matrioska' de Tiago Guedes (2007)]

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Sunday, May 11, 2008

...das identidades (take #21) Gravador nº2: Produção Artística (1ª parte)

A arte é um nome.
Como tal é preciso definir desde inicio sob que critérios, por quem, e de que forma é atribuído este nome a qualquer objecto, nunca esquecendo a inserção do universo em questão – o português – num sistema politico, económico e ideológico.

A arte é uma categoria de conhecimento.
Como tal obedecerá a regras e preceitos, possuirá critérios de consideração, obterá resultados, fará questões.
A arte é um nome. Até aqui nada de novo.

A arte é um nome, sim. O seu mais importante critério de consideração, ou nomeação, será – como o é na História da Arte, a própria história dos acontecimentos artísticos – a enunciação.
Em jeito de manifesto, Rogério Nuno Costa diz: “aquilo que eu faço, que eu proponho, não é nada que não aconteça já na minha vida de todos os dias, mas apenas e só porque eu digo “Isto é um objecto artístico!” e passa a ser…”[1]. Esta frase, já antes referido, é repetida devido á sua importância no contexto deste trabalho.
É importante perceber, e manter presente, que os artistas inquiridos, não revolucionam o mundo, eles aproveitam-no, recortam-no, montam-no de acordo com os seus princípios pessoais e opções artísticas – não necessariamente, ou quase nunca, estéticas – e devolvem-no a quem nele vive, á restante comunidade.
Esta é também a essência deste critério, e conceito, da enunciação: o artista (tal como o historiador da arte define a importância de uma obra tendo como suporte a própria historia dos objectos artísticos) define o que faz como arte tendo como base a importância do objecto criado na sua história – na sua capacidade de romper como tempo habitual e ser considerado como inscrito no seu tempo conceptual.
Deste ponto de vista podemos afirmar, como o induziu a performer indiana Sonia Khurana, que “as obras podem ser menos ‘obras de arte’ do que ‘realizações pessoais’” do artista. (Bousteau, 2007:71)
Ou seja, arte – no contexto deste trabalho – não será aquilo que é considerado como arte pela sociedade, mas essencialmente aquilo que é produzido em processo artístico, e segundo processos artísticos, por um individuo que entende esses mesmos processos e preceitos, os domina, e que entende o resultado dos mesmos como arte: o artista.

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Este passo, apesar de curto, pode ser transformador na maneira de entender, não só o que a seguir será descrito, como também da própria ideia que se tem em sociedade do que é fazer arte – ou produzir sentidos artísticos[2] –, ou do que é o objecto artístico.

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Como já dito acima, a arte – para além de um nome – é uma categoria de conhecimento. Como qualquer tipo de conhecimento, que o é, a arte – de forma mais ou menos consciente – será também uma forma de controlo, de domínio.
Catherine Russel, na sua obra Experimental Ethnography, descreve este controlo, como algo zoológico: um domínio exercido sobre o campo de acção, e sobre o próprio, do outro – o desconhecido, o exótico. Esta concepção de posicionamento de um indivíduo detentor de conhecimento é essencialmente importante no que toca à noção de distância – a noção de que o perto físico se torna distante do ponto de vista intelectual, ou seja, existe uma distância conceptual de segurança, que permite ao individuo a manutenção de um objectividade tão construída como a sua identidade pessoal, social, ou o posicionamento que assume perante determinada realidade. (Russel, 2003:120/121)
Partindo deste ponto, o olhar[3] do indivíduo observador – neste caso específico, o artista – deixará para trás a sua passividade, passando a assumir uma discursividade inerente a qualquer forma de produção de conhecimento.
Voltando ao criador Rogério Nuno Costa, e fazendo das suas palavras minhas, poderia afirmar que: “ (…) toda a arte de uma maneira geral, é exposição de ideias… Exposição no sentido de tornar… (…) Tornar ideias disponíveis… Tu estás a pensar sobre isto, estás a produzir um discurso sobre isto e tornas este discurso disponível e comunica-lo…”[4]. No final seria exactamente neste discurso produzido à volta de determinadas observações que residiria o controlo de que antes se fala – em última análise, na manutenção da já referida distância conceptual de segurança em relação ao objecto observado.
Contudo, no campo da produção artística, este discurso não pretende ser qualquer espécie de domínio: o domínio que é exercido é sobre as realidades observadas, muito mais do que sobre o outro, o outro indivíduo. Até certo ponto, e muitas vezes, o único domínio exercido é apenas sobre si mesmo, sobre a sua realidade – importante é não esquecer que esta realidade, será muitas vezes intersectada por outras realidades, de outros indivíduos, bem como será a mesma realidade de outros indivíduos de uma comunidade; estas justaposições e intersecções serão explicadas parágrafos adiante no contexto das potencialidades de conexão significativa de um objecto artístico.
Deste ponto de vista, a afirmação de Russel sobre a diferença entre o real histórico e o real referencial, torna-se ainda mais válida e pertinente – para a produção de um sentido, ou objecto artístico, o criador utiliza o real histórico, o qual serve de base de trabalho: vivências, experiências, pensamentos, relações, sociabilidade, realidade politica, económica, artística, religiosa, etc. envolvente; para que depois todos estes aspectos da realidade sejam reapresentados a um público sob a forma de um discurso artístico e conhecedor – não só da realidade em si, mas dos efeitos produzidos por ela na existência do artista, ou de outros indivíduos (caso o trabalho seja, ou não, auto-referencial). Acerca desta noção de discursividade da produção artística enquanto forma de conhecimento, resta apenas nomeá-la também – por outro lado – como metadiscursividade, ou seja, não é um discurso escatológico, finito, ou espacialmente restringido: tal como o olhar, este discurso é dinâmico, e decorrente no tempo; uma discursividade que se mantém em actualização, que fomenta a produção de mais discurso em continuidade e em ruptura.

Este discurso, como qualquer objecto artístico, assumirá em resultado uma forma – forma essa que, advindo do conteúdo que se pretende mostrar e uma vez que “ (…) numa era de técnica avançada a ineficácia é pecado contra o Espírito Santo”[5], se pretende não só eficaz no campo da elucidação, como no campo da incisão.
Catherine Russel apresenta, na obra já anteriormente referida, dois formatos de representação teorizados por dois autores da modernidade: a alegoria, de Craig Owen, e a aura, de Walter Benjamin.
Na realidade, e apesar de teorizadas enquanto oposição, estas duas teorias complementam-se mutuamente. Craig Owen apresenta a sua noção de alegoria como a capacidade de salvação, ao esquecimento, de algo que está em vias de extinção – noção que inicialmente seria teorizada para as artes gráficas (cinema e fotografia), passará depois a ser extrapolada para outras formas do fazer artístico. Por outro lado, Walter Benjamin define a aura da obra de arte como uma qualidade perdida da modernidade, uma espécie de espiritualidade que une os diferentes componentes do real que compõem a obra, e lhes oferece coesão.
Como já dito antes, estas duas concepções apresentam-se como contrárias, porém numa análise mais atenta, cedo se percebe o seu grau de complementaridade: se por um lado temos uma visão estrutural da representação da realidade, ligada ao momento da experiência, à visão; temos por outro uma visão que se debruça sobre uma espécie de sacralidade da obra de arte, menos ligada directamente à visão em si, mas mais à intensidade com que essa experiência decorre – ou seja, uma espécie de corpo, e uma espécie de alma. Em suma, o objecto artístico corresponderá então a uma reorganização não aleatória de determinada realidade – mais social, mais individual, mais lírica, mais politica –; ou seja, um arranjo de diferentes alegorias[6] referentes a determinada realidade, possuindo esse arranjo uma linha de pensamento que ligará, de forma coerente e clara, as diferentes alegorias transformando-as num discurso, apesar de estruturalmente heterogéneo, intensamente uno.
É neste ponto que, sem abandonarmos Walter Benjamin, alcançamos a noção de referencialidade. Este termo, apesar de muitas vezes se encontrar em equivalência como o termo representação[7], é apresentado por Benjamin de forma deveras interessante: um processo temporal – passado recente, presente momentâneo, futuro como espelho do passado – que resultaria no que acima se chamou de desejo / saudade.
Deste ponto de vista, pode afirmar-se que a produção artística – em técnica e temática – espelhará um determinado momento histórico. Contudo, a acção artística vai muito além dessa função de espelho: não só reflecte um momento histórico, como o constitui enquanto componente da sua estrutura teórica.


[1] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XVI.
[2] Rogério Nuno Costa. Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XVIII.
[3] Gaze theory: concebida de diversas formas ao longo do início do século por vários autores, entre os quais Walter Benjamin, ou Michel Foucault.
[4] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XVIII.
[5] HUXLEY, Aldous, Admirável Mundo Novo, Livros do Brasil, Lisboa, 1932, p.15.
[6] Mais à frente denominadas, segundo a terminologia forjada por Verónica G. Metello, como representações componentes descentradas.
[7] O termo representação adquire aqui um tom assumidamente depreciativo uma vez que se refere geralmente à substituição directa de um item por um relacionado. Contudo o que se pretende, e como já referido em texto anteriormente, não é uma representação pura, mas antes uma referência: um qualquer ponto de contacto, mais ou menos remoto – mais ou menos óbvio –, entre a realidade que se experiência, e o passado a que se refere.


[Imagem: 'Entalados' de Ramiro Guerreiro (2006)]

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Wednesday, May 07, 2008

...das identidades (take #20) Gravador nº1: Tempo (4ª parte)

Citando Korzybslsi, William Burroughs descreveu o ser humano como «o animal que encadeia o tempo».
A bem da verdade, e se Burroughs quisesse ter sido especialmente correcto – ou fosse português –, não teria definido o ser humano como o animal que encadeia o tempo, mas sim como o animal que constrói tempo, e que esse tempo é (em essência) a sua própria existência e individualidade.
Como parte ínfima e mais elementar desta estrutura teríamos os acontecimentos inscritos – vivências mais ou menos voluntárias que, por um grau de relevância emocional, se destacam de todos os acontecimentos quotidianos que seguem uma lógica ou rotina –, que depois de arranjados, sobrepostos ou entremeados construiriam uma narrativa de memória, e subsequentemente de identidade. Tal narrativa, apresentaria uma construção épica, em que só existem acontecimentos inscritos de elevada relevância emocional, e que descreveria o papel do indivíduo num grupo (mais ou menos alargado), de modo que a sua memória lhe sobrevivesse.
Citando Korzybslsi, William Burroughs descreveu o ser humano como «o animal que encadeia o tempo».
Eu descrevo o artista português – e o artista porque o faz talvez de uma forma muito mais assertiva, do que outros indivíduos de uma sociedade – como o animal que se sobrevive a si mesmo através da memória.

[Imagem: 'Family Project' de Miguel Bonneville (2007)]

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...das identidades (take #Anexo)

...entrevistas em anexo mediante pedido por comentário neste post...

devidamente identificados o propósito e o sujeito...

obrigado!

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Tuesday, May 06, 2008

...das identidades (take #19) Gravador nº1: Tempo (3ª parte)

No decorrer das entrevistas feitas nos cinco estudos de caso – junto dos cinco artistas escolhidos –, foram feitas perguntas que incidiam nesta temática: “Qual é a tua memória mais antiga?”, “O passar do tempo é uma coisa aflitiva?”, “Como enfrentas a tua finitude?”, entre outras que não sendo directas caminhavam nessa direcção[1].
Apesar de um intervalo geracional de considerável dimensão – 15 anos entre os dois extremos – e uma variedade de origens – desde o Norte até ao Sul do pais, passando ainda por ex-colónias, como contexto de nascimento e/ou criação –, as respostas revelaram-se muitas vezes idênticas no seu conteúdo, e inúmeras outras na forma.
Por outro lado, foi também durante as entrevistas que surgiu a divisão entre tempo habitual e tempo conceptual; porém foi também no seu decorrer que mais vezes se misturaram.

Quando confrontados com questões que remetiam para a eleição da mais antiga das memórias, maior parte destes artistas nomeia acontecimentos da sua infância ou adolescência. Contudo, os acontecimentos que se consideram mais marcantes, não se prendem com aqueles que, na sociedade em que nos inserimos, se têm como de maior relevância: rituais de passagem – entrada para a escola, terminar da formação académica, primeiro trabalho profissional, etc.
Na realidade, as primeiras memórias aferidas no decorrer das entrevistas, prendiam-se com episódios pontuais em que os momentos acima descritos serviam apenas de cenário, ou contexto; a importância destas memórias não se prende com uma vivência em sociedade, mas antes com vivências pessoais, pormenorizadas, íntimas, e de carácter onírico de elevadíssimo grau; e cuja nomeação releva muito mais de uma importância emocional, do que de uma importância social.
Exemplos disso poderiam ser as respostas de Patrícia Portela: “aos 3 anos cortei a minha mão, tenho aliás uma grande cicatriz, com uma garrafa de cerveja… Era um bocadinho precoce é um facto… Tropecei num vestido, caí em cima de uma garrafa de cerveja… Só me lembro de cair, e só me lembro de acordar enquanto me cosiam a mão… É essa a primeira memória… Não me lembro de nada entre, nem antes, nem depois, nem coisas chatas, nem de sangue, nem de dor, de nada… Só me lembro de cair e acordar a coserem…[2]”, Miguel Bonneville: “eu baralho um bocado assim as idades, quando eu era mesmo pequeno… E às vezes há coisas que eu acho que me lembro, mas é de me terem contado e eu ter criado uma imagem qualquer… Mas, não sei, acho que era para aí quando eu tinha 3 anos e fiquei a chorar imenso tempo…”[3], ou Tiago Guedes: “ (…) quando era miúdo era muito ligado às coisas manuais, às coisas de bricólage e assim… No colégio das freiras nós aprendíamos de tudo: a serrar, a cortar, a bordar, e eu gostava bastante… Mesmo em casa, tenho varias fotografias, de quando era pequeno, a fazer esse tipo de trabalhos…”[4].
Estas respostas são bastante exemplificativas do que se dizia acima – os conteúdos diferem, as situações, contudo o contexto cronológico é em tudo semelhante: infância, adolescência, momentos de certa intimidade e cujo valor reside muito mais na emoção do que no social. Por outro lado, e em particular se pensarmos no discurso de Miguel Bonneville, este é também exemplo do que acima se dizia sobre a forma como se joga com o tempo: “eu baralho um bocado assim as idades, quando eu era mesmo pequeno… E às vezes há coisas que eu acho que me lembro, mas é de me terem contado e eu ter criado uma imagem qualquer…”.
Neste ponto, podemos confirmar a existência de aspectos infantis – isto porque, mesmo quando não aferido por perguntas directas, foi inúmeras vezes referido os períodos da infância e da adolescência como marcantes na formação dos interlocutores, muitas vezes ligados ao sentimento de saudade – sobre a fruição do tempo: este jogo entre passados que se confundem, e entre aquilo que vivemos e reproduções performativas daquilo que vivemos. Até porque o que interessa na construção temporal portuguesa, não será tanto o quando aconteceu, mas sim o facto de ter acontecido e as circunstâncias em que determinado acontecimento se dá.

No que toca à passagem do tempo, é neste ponto que surgem as maiores dificuldades de divisão entre um tempo habitual e um tempo conceptual: eles separam-se em sistema, porém remisturam-se na vivência.
Inevitavelmente, e muito devido ao posicionamento profissional destes artistas, o tempo habitual (ou particular) confunde-se com o tempo conceptual (ou geral), uma vez que também se funde a vivência quotidiana com a vivência artística: elas intercalam-se, completam-se, alimentam-se e coexistem.
Do tempo, Rogério Nuno Costa disse: “Acho que temos pouco tempo para viver… Houve alguém que disse… Acho que era português… Que entrou numa biblioteca e ficou muito deprimido porque percebeu que não tinha tempo para ler os livros todos… Tempo de vida… E eu tenho muitas vezes essa sensação, não em relação a coisas exteriores a mim, mas em relação a coisa que eu quero muito fazer, sinto que não terei tempo de vida suficiente para fazer aquilo que quero…”[5], enquanto Ramiro Guerreiro afirma: “É uma inevitabilidade, não há nada que possamos fazer contra isso, por isso quanto menos nos afligirmos melhor… Não é procurar esquecer tudo o que passou, não tenho nada essa visão das coisas… Não é viver um dia de cada vez e ir sempre em frente e esquecer o que aconteceu antes… Não é nada disso… Mas não há nada a fazer quanto a isso… Não me diria que me aflige o passar do tempo, mas há tempos passados que me interessam bastante”[6]. Tal como este dois criadores, também P. Portela e M. Bonneville afirmaram não se tratar de uma coisa aflitiva do ponto de vista particular, porém aflitiva do ponto de vista geral, no caso de Patrícia Portela.
Será exactamente neste ponto que se torna fulcral a divisão entre os dois tempos, mas também onde eles mais se fundem. A passagem do tempo é assertivamente referida como algo inevitável, e como tal a sua fruição é encarada com naturalidade; porém, o passar do tempo enquanto sucessão de acontecimentos, torna-se mais veloz do que o anterior, e como tal mais curto. Por outro lado as razões referidas, pelos diferentes artistas, para justificar essa aflição não diferem consideravelmente em conteúdo – a formatação para o fim (anteriormente referida), bem como questões teóricas acerca do tempo (debate aceso e actual), e as referências a projectos futuros são indicadas como as principais justificações. Porém estas questões acabam por se entremear com o tempo particular, uma vez que as questões associadas às noções de projecto e teoria se encontram intimamente ligadas ao desenvolvimento do trabalho destes diferentes artistas.

Porém, destas três questões a que se revelou menos óbvia foi a que inquiria sobre o medo da morte – física ou artística.
Esta questão, trabalhada nos textos de Eduardo Lourenço e Michelle Rocha – como referido no início do capítulo –, revelou-se intimamente ligada ao conceito de identidade, para além do mais óbvio conceito de temporalidade.
Afirmo isto porque, uma vez confrontados com a questão “Como enfrentas a tua finitude?”, cinco artistas dizem enfrentar a sua finitude física sem problemas filosóficos de maior. Quando confrontados com as questões ligadas a uma morte artística, as respostas dadas variam entre os pólos positivo e negativo. Contudo, o que realmente me parece mais relevante é o facto de muitas vezes, a ausência de medo da morte física ser justificada com questões artísticas: “mim a morte e as questões relacionadas com terminar alguma coisa são questões muito simples… Sei que um dia hei de morrer, não quero morrer em sofrimento mas quero morrer… (…) Quanto a terminar artisticamente, vejo isso também muito bem porque eu sou coreógrafo, mas podia ser outra coisa qualquer… Ou seja, eu sou coreógrafo porque o contexto me levou para aí, mas eu tenho muitos outros interesses…”, diz Tiago Guedes[7]. Por outro lado Patrícia Portela afirma: “ [a morte artística] aflige-me muito mais, e isso eu consigo imaginar… Mas também consigo imaginar não dar por isso, ou não querer dar por isso… (…), e não encaro nada bem, mas… Aliás, acho que o próximo é sempre o último… O melhor é aproveitar, porque depois não vem mais nenhum…”[8]; assim como Rogério Nuno Costa e Miguel Bonnille apontam a crença numa arte em sociedade – enquanto houver mundo á sua volta, haverá com certeza coisas para dizer, mensagens a passar –, e Ramiro Guerreiro fala de um prolongamento da existência de um individuo através da sua obra.
Ou seja, as respostas a esta questão pareceram-me deveras interessantes, porque para alem de misturarem mais uma vez a divisão entre tempo habitual e tempo conceptual (forjada pelos próprios), elas misturam de igual forma uma outra divisão, aceite ou anulada pelos próprios, entre arte e vida. Creio ser possível fazer esta afirmação uma vez que, dos cinco artistas, nenhum apresentou razões para o medo, ou a sua ausência, sem ser através das questões artísticas ligadas à sua existência.
Sem grandes desvios, e talvez avançando uma questão particularmente identitária, parece-me importante referir esta ligação a um outro conceito – subjectivo e algo fora do contexto deste trabalho, mas que me parece de extrema importância para a percepção de certas questões –, o conceito de utilidade. Assim, parece-me plausível afirmar que tal como o jogo (acima referido) podia aumentar, ou encurtar, o tempo conceptual de um indivíduo, ou comunidade, também a construção identitária baseada na utilidade do individuo na sociedade parece estar associada a essa manipulação do tempo – manipulação essa que, como referido acima acerca do adiamento do término, parece tender sempre para um alargamento do tempo, ao invés de um encurtamento. Resta então dizer que através do seu prolongamento, e apesar de se entremear com o tempo habitual durante o tempo de vida física do indivíduo, o tempo conceptual do mesmo estende-se para além desta existência carnal através da sua obra – associação importante com as noções de memória e legado.


[1] Consultar anexos p. I a XXXVII.
[2] Para consultar da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXXII.
[3] Para consultar da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XIV.
[4] Para consultar da entrevista na íntegra, consultar anexos p. IV.
[5] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXII.
[6] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXVII.
[7] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. VII.
[8] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXXVI.
[Imagem: 'Fui - Esboço Plástico' de Rogério Nuno Costa (2006)]

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Monday, May 05, 2008

...das identidades (take #18) Gravador nº1: Tempo (2ª parte)

Tanto no estudo de caso sobre António Dacosta[1], apresentado por Michelle Rocha, como no trabalho sobre o sentimento de saudade de Eduardo Lourenço, o tempo português é unanimemente categorizado como mítico.
No primeiro caso – e tendo em linha de conta que se trata de um trabalho de teoria da arte e não de um trabalho sobre as questões sociais levantadas pela produção de determinada obra –, Michelle Rocha inscreve o trabalho de António Dacosta num tempo mítico, sem a apresentação de maiores desenvolvimentos teóricos. Contudo, refere inúmeras vezes as questões de manipulação do tempo conceptual (explanado acima) associada ao términos da vida física do individuo, bem como as noções de perda e regresso[2].
Por outro lado, o filósofo Eduardo Lourenço aprofunda estas questões, de forma mais desenvolvida no seu trabalho sobre o sentimento de saudade, adicionando-lhes as noções de ficção, mutação, desejo, reinvenção e ausência/fuga de/ao devir.

Como referido anteriormente, os diferentes tempos conceptuais – elaborados por cada indivíduo – têm como base um acontecimento comum, que unirá pela memória os indivíduos de uma comunidade, ou sub-comunidade. Porém, os graus de relevância entre acontecimentos são atribuídos por oposição entre si; ou seja, é na comparação que se obtém o grau de relevância de uma memória, e/ou acontecimento, e subsequentemente do seu grau de protagonismo na narrativa identitária de um indivíduo.
Contudo, no caso especifico da construção temporal portuguesa, esta oposição que forma a narrativa identitária é de tal maneira forte que maior parte das memórias que intercalam as de maior relevância são absolutamente esquecidas[3]. Assim, a construção conceptual de tempo para um indivíduo português pressupõe que nele só existam acontecimentos inscritos de elevado grau de relevância, e que as restantes memórias que compõem a narrativa identitária sejam esquecidas de forma performativa e simbólica.
Por outro lado, esta característica desta forma de viver o tempo promove um abrandamento no passar do tempo, bem como a ausência de mudança no seu decorrer. Mais á frente será apresentado o conceito de saudade, por agora basta referi-lo como ferramenta de manipulação temporal.
Como se sabe, o sentimento de saudade – muitas vezes referido como típica, e exclusivamente, português – refere sempre a um passado, mais ou menos longínquo. Porém o que não é obvio, é a sua referencia também a um futuro, tão ou mais distante do que o passado a que se refere. Assim, e como já referido acima, o conceito de saudade pressupõe a perda de um objecto de desejo, bem como a esperança na sua recuperação, no seu regresso.
Esta manipulação, ou jogo, entre temporalidades – bem como a forma como é construído com base num único critério de relevância –, resulta numa anulação conceptual do momento presente: o presente passa a ser apenas um espaço de trânsito entre o passado e o futuro, entre a perda do objecto de desejo e o seu retorno. Assim, a única oposição de maior relevância, não se dá entre acontecimentos passados, mas antes entre o passado e o presente, entre o presente e o possível futuro.

Tanto Eduardo Lourenço, como Michelle Rocha – um analisando obras de caris literário, outra analisando obras de caris pictórico –, nos dão conta deste facto através da temática do término, da morte física do indivíduo. Ou seja, esta continuidade temporal em que o presente não passa de um momento transitório entre outros dois de maior relevância, é uma forma simbólica de anulação desse mesmo término – de forma mais ou menos consciente, procura-se atrasar a morte.
Patrícia Portela, quando confrontada com as questões sobre a passagem do tempo, diz: “É uma lógica de tempo feita para o término: é o ano 2000, é o fim do mundo, é o fim do ecossistema, é o buraco do Ozono… É tudo para o fim, ninguém nos formata para o princípio… (…) nós sentimo-nos sempre no limiar de qualquer coisa… Até porque estamos sempre a prever o fim do mundo, não é? Desde sempre… Aliás a história do Paraíso é mesmo essa… Que acabou o Paraíso… Nós começamos uma historia que acabou… Com uma coisa que acaba… É um bocado esquisito…”[4].
Se pensarmos bem, e tivermos em linha de conta a conceptualização de saudade feita por Eduardo Lourenço, podemos afirmar que esta formatação para o fim existe realmente, mas que esse fim não é um fim total, ele é antes um novo principio: a recuperação do objecto de desejo nunca é certa, nunca é definitiva – a partir do momento em que torna presente, ela é tão transitória como o próprio presente.

Por outro lado, surgem outras perspectivas que validam também esta maneira portuguesa de construir o tempo. Exemplificativa seria a postura de Miguel Bonneville, quando confrontado com a questão sobre o medo da morte: “eu tenho tido algumas conversas (…) sobre o facto de eu criar e estar sempre a criar… E no fundo estar a criar uma história paralela onde eu também posso ver… Porque no fundo eu acho que não gosto muito de viver, não acho piada nenhuma a isto… E acho que o Miguel Bonneville, e a loira, e o Blackbambi, e essas coisas todas que vão aparecendo, são mesmo para me obrigar a ficar aí, e a continuar, e para não pensar muito… Porque é super aborrecido, e é chato… São mecanismos de sobrevivência…”[5].
Ou seja, os processos activos de criação de tempo, são exactamente isso, o retardar de um momento final, por qualquer que seja a razão do seu acontecimento, voluntário ou involuntário.

Deste modo, alcançamos o outro patamar da multiplicação do tempo: a performatização de acontecimentos inscritos.
Partindo deste ideia de mecanismo de sobrevivência, com que Miguel Bonneville veste o processo activo de performatização – e sobretudo se tivermos em linha de conta a referência a personnas concebidas por este criador –, podemos afirmar que se assiste a um processo de reinvenção de memórias no decorrer da performatização dos acontecimentos. Assim, e contrariamente ao que se poderia predizer, esta forma portuguesa de construir o tempo, não é paradoxal em relação à afirmação de Peggy Phelan – o facto de existir uma anulação conceptual do passar do tempo, não torna automaticamente as performatizações de acontecimentos nos próprios acontecimentos; porém, também não se pode falar de uma referência a um passado, visto que este parece ser mais presente que o próprio presente. Assim, o que temos é antes uma reinvenção desse mesmo passado: as performatizações não são referentes a um passado, elas são o passado reinventado, são o passado tornado presente; elas não se referem a um passado, elas utilizam o passado para mutar e camuflar o presente, elas ficcionam-no – como num sonho.
Assim, e finalmente, a forma portuguesa de viver o tempo – e por isso referido o termo jogo, parágrafos acima –, trata-se de uma manipulação jogada desse conceito, das memórias passadas e das esperanças futuras; assumindo características quase infantis sobre a fruição do tempo, bem como características de elevada complexidade cognitiva.




[1] Pintor surrealista português. O artigo de Michelle Rocha centra-se essencialmente na produção deste criador no período da década de 50 do século XX.
[2] Também denominada, por autores clássicos, como eterno retorno.
[3] Do ponto de vista da narrativa identitária.
[4] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXXIV.
[5] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XIV.

[Imagem: 'Flatland' de Patricia Portela (2004-2006)]

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