Monday, March 31, 2008

...das identidades (take #10)...

Desde o inicio de uma formação em História da Arte, que um aluno é bombardeado com a questão do contexto: contexto de criação de uma obra, contexto sócio político do artista, contexto económico, correntes de pensamento vigentes, etc. – tudo isto importa num obra de arte, e tudo isto importa conhecer para que uma obra se possa considerar uma obra de arte.
É então necessário conhecer-se o que já passou, o que nos trouxe até aqui, o que resistiu, o que definhou, ou que foi quase morto (e que por vezes terá chegado mesmo a morrer para depois ser ressuscitado) e depois recuperado; o que se fez, como se fez, quem fez, porque fez, etc.
Arte poderá ser só um nome atribuído a uma criação – mas não terá essa criação de merecer esse nome? Para o bem e para o mal, de o merecer? Poderá esse merecimento vir com o tempo? Ou será alcançado ao fim de uma série de tentativas sequenciais, por vezes passando de geração em geração, até se atingir aquele ponto? Genialidade ou aprendizagem acumulativa?

E hoje? Quem são estes artistas que povoarão a história da arte portuguesa na primeira década do século XXI? Será que farão a história desse período? Existirá na arte portuguesa uma qualquer característica que a torne válida aos olhos dos outros? Possuirá o povo português uma identidade artística que é comunicada pelos nossos artistas?

Foram entrevistados: Tiago Guedes – coreógrafo; Miguel Bonneville – performer; Rogério Nuno Costa – performer; Ramiro Guerreiro – artista plástico; e Patrícia Portela – Encenadora.
Nascidos entre os anos de 1974 e 1985, estes são alguns dos artistas que hoje povoam a cena artística portuguesa em áreas eminentemente performáticas, do ponto de vista criativo e que, como tal, criam objectos artísticos que não só jogam a sua identidade (do artista), como questionam a de quem consome tais objectos artísticos.
…que constroem identidades.

Afinal, em que pé estamos?

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Thursday, March 27, 2008

...das identidades (take #9)...

Todos os conceitos de maior relevância, e que assumem uma posição de destaque neste trabalho, estão explanados – quanto mais não seja na sua essência enquanto referentes. A consciência de que certas pontas ficaram soltas ao nível de pontes, ou da própria conceptualização, permanece, e é com a intenção de que serão exploradas no decorrer do texto que as deixo permanecer.
Deste modo, passamos ao próximo passo: perceber em que contexto estes conceitos se tornam pertinentes no universo artístico português. Para tal proceder-se-á a uma breve inventariação explicativa das correntes subjacentes às diferentes formas de fazer arte em Portugal – desde o início do século XIX até à actualidade. O espaço temporal poderá parecer alargado, contudo é importante perceber – de um ponto de vista evolutivo – o porquê das formas actuais de fazer arte, o que foi abandonado ao longo do tempo, o que se tornou desnecessário, obsoleto; e mais importante, o que se tenta procurar, a que problemas e perguntas se tenta responder.
Passamos à exposição da “Génese e Rumos da Contemporaneidade Portuguesa”[1].

[1] Título do artigo de José Fernandes Pereira, incluído no nº 6 da revista ArteTeoria – Revista do mestrado em Teoria da Arte da F.B.A.U.L. (ver bibliografia).

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Wednesday, March 26, 2008

...das identidades (take #8) - Conceito-Chave: Memória Colectiva

O conceito de memória colectiva relaciona-se intimamente com o de identidade, uma vez que o primeiro é informado pelo último, reformula essa informação e informa de volta a identidade do indivíduo. Nesse sentido, pode afirmar-se que o conceito de memória colectiva promove, não só a conceptualização de um grupo de memórias colectivas comuns a um determinado grupo de indivíduos, mas essencialmente uma dialéctica entre a memória de um individuo, da sua experiência pessoal, e a relevância e incorporação da mesma na identidade do grupo a que pertence.

Paul Connerton, na sua obra “How Societies Remember” de 1989, define o conceito de memória colectiva como um sistema.

Num dado momento no tempo, decorrem acontecimentos – acontecimentos esses que dependendo da sua dimensão social, mediática, politica, económica, etc., poderão ser entendidos como momentos instauradores de regimes de interpretação da realidade – ideologias, correntes de pensamento filosófico, politico, etc. –, como momentos de ruptura de regimes anteriores, como inícios. Deste ponto de vista, esta visão da noção de memória colectiva encontra-se intimamente ligada ao conceito (já exposto anteriormente) de mito; uma vez que a ideia de um começo desamparado de estruturas prévias possui um carácter deveras mitológico, ou até bíblico – ou seja, potencial e cientificamente impossível.
Na realidade, e tal como o mito, a memória social existe porque, convencionalmente, é aceite pela maioria da população de uma comunidade/sociedade quando evocada e, como tal, existe porque se constrói colectivamente baseando-se em experiências individuais e colectivas de tal dimensão que a informam nos campos da regra e do hábito. Assim sendo, construídas, aceites e jamais totalmente novas – transformação de algo pré existente em algo novo e original –, as memórias colectivas surgem, segundo este autor, sempre por reacção a algo que já existe – nomeadamente por reacção negativa, de ruptura, de rompimento.
Como já dito acima, convencionalmente a memória colectiva de uma comunidade informa a sua identidade (do grupo) ao nível da regra e do hábito, e será através deles também que ela se legitimará, bem como se evidenciará aos olhos dos que a ela não pertençam.
E é exactamente neste ponto que Paul Connerton justifica a sua presença neste corpo de texto – o autor atribui aos factores performáticos do hábito, e da regra, a importância devida; uma vez que serão eles os que permitiram a experiência directa de uma memória colectiva por parte de outrem: através da sua visualidade.
Deste modo, o autor reinventa – para o campo da antropologia e da sociologia – os conceitos de corpo, cerimónia e performance. E fá-lo porque acredita que é neles que reside a memória colectiva, é neles que reside a sua expressão: nos hábitos sociais do corpo (apresentação, postura, movimentos, etc.), nas cerimónias de carácter ritual e na performance desses mesmos rituais – a manutenção de uma memória colectiva faz-se pela repetição das práticas que lhe estão subjacentes, até que estas sejam esquecidas como regras e praticadas como hábitos.
É neste universo que Paul Connerton se move, e é nele que baseia a sua conceptualização de memória colectiva como um sistema: um sistema de expectativas.
E porque o faz? Porque, uma vez que se baseia no que de visual existe na expressão de uma memória colectiva – e como tal de uma identidade –, seria de esperar que Paul Connerton explorasse também as noções de hierarquia e poder, que à de memória colectiva estão associadas.
As memórias individuais, e colectivas, que compõem a memória de uma comunidade encontram-se organizadas por graus de importância (sendo que este varia consoante o contexto geográfico, social, politico, económico, artístico, religioso, etc.). Por outro lado, para um indivíduo – ou pequeno grupo – conhecer aprofundadamente as memórias que compõem a memória colectiva da comunidade a que pertence e de que forma esta informa as práticas sociais, é ter poder sobre essas mesmas práticas: o poder de as contornar e de as manipular. Porém, durante grandes períodos de tempo na história, os contornos e manipulações feitos a regras sociais nunca chegaram para subverter essas mesmas regras. É neste ponto que reside a teorização de Connerton, e que a nós muito nos interessa: a memória colectiva, e respectiva de identidade de uma mesma comunidade, é componente de um sistema de expectativas – sistema que surge e se rege, tal qual a construção de uma estrutura identitária, por oposições.
Assim, e para finalizar, podemos afirmar que o conceito de memória colectiva se define como a informação, de carácter ancestral, que dita os modos de actuação de um individuo em grupo – ou de grupos dentro de uma comunidade –, mas que ao mesmo tempo informa, por oposição às regras e hábitos de outras comunidades, o que esperar de um elemento (ou grupo) da primeira.

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Tuesday, March 25, 2008

...das identidades (take #7) - Conceitos-Chave: Identidade e Saudade

Passamos ao conceito de identidade.
Para a explicitação deste conceito invocamos primeiramente o autor Ruy Duarte de Carvalho[1].
Na obra de 1989, “Ana A Manda”, Duarte de Carvalho define identidade como a produção de evidências, de elementos distintivos de um universo circundante; podendo ela ser mais ou menos colectiva, e portanto, podendo essas evidências ter maior ou menor força. (Carvalho, 1989: 320)
Com base nas mesmas premissas, mas por outra perspectiva surge o autor Simon Firth. Este autor define, no seu artigo “Music and Identity”, o conceito supracitado como duas peças interligadas: a parte móvel e a parte empírica; ou seja, um processo dinâmico, e o resultado desse mesmo processo. (Firth, 1996:109)
Não bastando, surgem-nos ainda – na tese de Emília Margarida Marques –, as noções de conflito e discurso, ambas associadas também ao conceito de identidade.
Pois então que identidade é esta que pode ser todas estas coisas? Será ela todas estas coisas?
Sim.
Um pouco à moda de Michele Rocha, existe uma espécie de sacralidade na construção identitária que resume e agrupa todos estes elementos (que por vezes se contradizem entre si). Assim para o propósito deste trabalho, o conceito de identidade definirá não só aquilo que nos distingue – enquanto indivíduos ou enquanto grupo social –, mas também todo o processo que dessa distinção, e/ou pertença, advém. (Rocha, 2005:140)
Identidade será então a gestão de diferenças entre indivíduos de uma comunidade, e entre essa comunidade e outras: essa gestão pode denominar-se também por conflito e constrói-se com base num discurso narrativo que servirá de validação à identidade pretendida. O substantivo pretensão não é aqui utilizado em vão, ou levianamente – ele surge exactamente porque a identidade é construída pelo indivíduo, ou pelo grupo, no discurso sobre essa mesma identidade, possuindo assim (e ainda) uma componente onírica, bastante característica do processo identitário.
Identidade será também um processo, uma postura face à experiência de algo – acontecimento social, estético, económico, religioso, etc. –, será discurso à volta dessa experiência, e discurso à volta desse processo; e mais do que resultado, esse discurso será meramente mais processo; ou seja, a identidade possuirá formas e preceitos mais ou menos estáveis, porém passíveis de alterações profundas; sendo que estas advirão do grau de diferenciação pretendido pelo indivíduo, e/ou grupo, em relação a outro individuo e/ou grupo. Em suma: identidade é criação.
Quem são, então, aqueles que criam? Passamos ao conceito de artista.

Como já foi antes referido, o conceito de artista define-se – para o propósito deste trabalho – como o indivíduo que cria objectos artísticos; muito mais do que aquele que os executa: o intérprete. Ainda que estas duas posições sejam concomitantes, será sempre na posição de criador que o individuo artista será relevante para esta pesquisa.
Em 2005, num artigo para a revista de teoria da arte ArteTeoria, a autora Luísa Alexandra citava O’Flaherty, definindo o artista como “aquele que sonha « (…) mas aprende a controlar [o sonho] activamente, a transformá-lo num objecto material que todos podemos ver e tocar. Em vez de apenas contar o seu sonho, o artista exibe-o e arrasta-nos para o interior da sua experiência de uma maneira que, habitualmente, só está à disposição dos não artistas quando estão apaixonados»”. (Alexandra, 2005:199)
Assim, e de forma mais completa, o conceito de artista define-se não só como o individuo que assume o papel de criador de objectos artísticos, mas também daquele que os cria porque domina um certo tipo de linguagem e conhecimento, bem como o savoir faire – o manuseamento de determinadas ferramentas conceptuais – que, não só o habilitam para o fazer, como validam o seu trabalho enquanto produtor de objectos, conceitos e discursos artísticos.
Uma vez que já passaram em revista alguns dos instrumentos conceptuais da criação artística contemporânea, convoca-se o conceito de saudade – o conceito que será encarado como componente primordial da identidade portuguesa e que, como tal, teria uma forte influência na identidade do indivíduo artista, bem como seria um importante vocábulo, referente, representação componente descentrada, nas obras criadas na contemporaneidade artística portuguesa. Passemos ao conceito de saudade.

O conceito de saudade surge, no contexto desta pesquisa – e como já foi antes referido –, como vocábulo primordial da identidade cultural portuguesa e, como tal, como suposto vocábulo primordial da identidade individual do artista português.
Assim, saudade define-se logo de início como portuguesa. E define-se assim, não porque o sentimento seja exclusivo – o sentimento de perda ou de falta de algo é comum a toda a raça humana –; contudo, a forma de o experienciar torna-se uma característica marcante do povo português.
Invocando uma vez mais o autor Eduardo Lourenço, o conceito de saudade é definido como um sentimento de carácter mitológico, ou seja, propõe a mítificação do objecto de desejo. E isto porquê? A saudade portuguesa não se resume somente a um forte sentimento de perda, ela incorpora em si um outro sentimento, tão ou mais forte, de esperança de recuperação do objecto[2] perdido.
Deste modo, o conceito de saudade define-se como uma mistura das noções de nostalgia e esperança, como um sentimento de perda que baseia um forte sentimento de retorno. Porém, não poderia ficar de fora um outro aspecto, um pouco mais analítico e deveras mais interessante, deste conceito. Sendo ele a união entre dois opostos, e ponte entre um passado e um futuro, ele define-se também como um instrumento de manipulação do tempo; manipulação essa que poderá ser mais ou menos consciente. Este conceito promove a anulação do tempo presente como algo relevante, e transforma-o num simples processo de trânsito entre o passado, onde reside o objecto perdido de desejo, e um futuro pelo qual se anseia, no qual o objecto de desejo volta à posse do individuo. Assim, saudade é manipulação do tempo, de desejos, da dimensão onírica da identidade portuguesa; é a construção de um passado ficcionado, legitimadora de um futuro, justificante de um presente, e que transporta a dimensão imagética da identidade cultural de um povo para a dimensão real e quotidiana da mesma.
Resta-nos finalmente a definição de um último conceito – outro fulcral para o desenvolvimento deste trabalho –, e que justifica a sua presença a partir do conceito de saudade, visto que este é comum ao povo português, e transversal a várias áreas da esfera social: o conceito de memória colectiva.

[1] Ana A Manda – Os filhos da rede, I.I.C.T. – Ministério da Educação, Lisboa, 1989.
[2] O termo objecto assume aqui o papel de referente a um desejo. Esse objecto poderá tomar a forma de um outro indivíduo, local, contexto social (politico, económico, artístico, etc.).

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Monday, March 24, 2008

...das identidades (take #6) - Conceito-Chave: Mecanismo Performance

E porquê muitíssimo relevante? É ele que justificará a performaticidade de determinados objectos, bem como a sua artisticidade. Por outro lado, é este conceito que dita as regras do processo artístico enquanto acto performático e identitariamente estruturante.
Para uma melhor compreensão serão convocados os conceitos satélite: ritual, representação e sub-representatividade –, uma vez que serão eles os componentes variáveis deste maior, que é o conceito de mecanismo performance.
Comecemos então pelos conceitos de representação e sub-representatividade. Estes dois conceitos apresentam-se aqui na modalidade de binómio uma vez que são os dois maiores componentes de um objecto artístico: o objecto e a sua significação. Parece importante desde já fazer a ressalva: é aqui utilizado o termo significação ao invés de significado, uma vez que o uso deste último tornaria a interpretação do objecto demasiado escatológica; ou seja, o que nos interessa não é tanto um significado atribuído ao objecto, mas a multiplicidade de interpretações a que este se presta durante a experiência artística, de quem cria e de quem consome. (Metello, 2007:11)
Assim representação tratar-se-á do objecto concreto que se apresenta, enquanto que por sub-representatividade se entendem todas as potências de conexão entre esse objecto e o imaginário individual ou colectivo de quem experimenta o objecto artístico. Em suma, a sub-representatividade baseia-se na intensidade da experiência – muito mais do que no reconhecimento do objecto, na sua recognição, nas pontes que este cria para novos universos de significação.
Por outro lado, surge o conceito de ritual. Este conceito define-se essencialmente pelo seu carácter repetitivo; contudo – e como descreve Verónica G. Metello – esta repetição só o é na sua forma: o seu conteúdo, de índole hierofânica[1], encontra-se numa constante sucessão progressiva de mudança, em devir.
A par desta conceptualização mais abstracta, surgem porém questões ligadas ao tempo, ao espaço, à individualidade, e finalmente à colectividade. Tais questões surgem a partir da definição de liminaridade forjada por Victor Turner nos seus estudos sobre performance: noção que define o limite não como uma linha, mas antes como um a área de trânsito, de processo – processo esse que possui duas componentes estruturais: a liminal e a liminoíde[2]; o social e o pessoal/psicológico.
Assim, e usando a terminologia de Verónica Metello, o ritual é a repetição nua[3] de um acontecimento inscrito no tempo, mas que ao mesmo tempo é uma repetição vestida[4], devido ao seu carácter de constante mutação – devido à incorporação, com o passar do tempo, de novas experiências e da experiência de anteriores repetições do mesmo acontecimento: o ritual transforma-se a si mesmo.
Por fim, apresenta-se então o conceito central – à volta do qual todos estes giram – de mecanismo performance: um processo de descontextualização de determinados objectos, práticas e hábitos, para um posterior recentramento; em suma, a atribuição de novas significações a objectos, fora do seu uso ou significação quotidianos.
Assim, e numa articulação final, o conceito de mecanismo performance define o próprio processo de criação artística performática: mais do que a promoção de ruptura de limites, a promoção da sua extensão até ao limite da sua elasticidade conceptual; muito mais do que uma esteticização da realidade, uma intuição estética da realidade, ou seja, mais do que a tornar estética, tomá-la como estética. Promove, não a incorporação de elementos reais num universo imaginário, mas a revelação de componentes imagéticos que subjazem as práticas e os objectos reais. Por último, resta ressalvar que, uma vez que este processo implica não só o criador, como também o espectador, a intensidade da experiência do objecto artístico deixa de ser unívoco; ou seja, o processo artístico pode ser encarado como um processo fortemente identitário, tanto para o criador como para o espectador – ou seja, é nesta intensidade da experiência artística, que residirá a validade não só do objecto artístico, mas de todo o processo de descentramento e posterior recentramento conceptual: a validade da extensão dos limites dos componentes liminal e liminoíde do processo criativo, a incorporação (ou não) da experiência do objecto na estrutura identitária do individuo criador, e do individuo espectador.

[1] Eliade, Mircea, O Sagrado e o Profano – A Essência das Religiões, Lisboa, 2002, p.25. Revelação de uma sacralidade.
[2] Turner, Victor, Performance Analisys – An Introductory Coursebook, Londres/Nova Iorque, 2001. Os mecanismos referem-se à transformação do indivíduo, aos níveis colectivo e individual, social e psicológico, respectivamente.
[3] Repetição simples e aparente de uma mesma coisa.
[4] Repetição deslocada do contexto original, recontextualizada, e assumidamente em devir.

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Sunday, March 23, 2008

...das identidades (take #5) - Conceitos-Chave: Cultura Visual e Produção Artística

O autor Nicholas Thomas inicia o seu artigo “Collectivity and Nationality in the Anthropology of Art” referindo a noção de cross-cultural aesthetics – estética transversal entre culturas. (Thomas, 1997:256)
Tal conceito poderia levar-nos a estender o conceito de cultura visual, e transformá-lo no conceito de cultura artística. Porém, e para o propósito deste trabalho, a noção de visualidade torna-se bastante mais premente do que o artístico num sentido lato. Este facto deve-se à ideia de expressão de um colectivo através do processo artístico, contudo esta expressão só é apreensível do ponto de vista performático; ou seja, só podemos falar de uma cultura visual baseada na diferença identitária, na reacção.
O quer isto dizer: quer dizer que podemos falar de uma cultura, cuja visualidade é característica, mas somente se tivermos em conta outras culturas envolventes da qual a primeira se diferencie – tudo isto tomando como base uma espécie de interaccionismo chicaguiano.
Assim podemos falar de uma espécie de performance identitária, ou seja, de uma identidade que se revela a sua estrutura – ou premissas – no confronto com o exterior, a partir de rituais: religiosos, sociais, e/ou artísticos[1].
Como ritual artístico primordial temos então o processo – a geração de um objecto artístico baseado num modo de pensamento próprio e em premissas teóricas próprias da área artística –, e além dele, as noções de tipo de juízo e ângulo[2] (premissas teóricas e formais que podem dirigir o processo de criação). (Thomas, 1997: 262)
Nada disto é novo, estas noções de confronto associadas à identidade e estes rituais que as revelam (às identidades), porém é recente a sua aproximação ao universo artístico. O que se pretende com este conceito é definir uma cultura (grupo ou subgrupo, comunidade ou nação) partindo das suas manifestações artísticas visuais – definição na qual a noção de performance justifica a sua presença (se tal for preciso) pelo seu carácter re-articulador de signos e significados (o já anteriormente falado, e explicitado mais à frente, conceito de mecanismo performance). Assim a obra, apesar de criada individualmente, nunca deixa de ser criada por uma comunidade, pois é nela que o criador se desenvolve e aprende a trabalhar as premissas teóricas bem como as ferramentas formais para construir o seu discurso – um discurso que poderá não ser representante dessa mesma comunidade, mas poderá ser representativo da mesma. Ou seja, pretende-se conceber a maneira como a memória é traduzida – nas palavras de David McDougall – para imagens: que referentes simbólicos são utilizados e que ideologia dirige a selecção de determinado instrumento teórico, ou formal, num processo de criação artística. (McDougall, 1994:261-262)

Passamos ao conceito de produção artística.
Não podemos contudo defini-lo sem outro um outro conceito que, para além de definir o que se entende por produção artística, acabará (nalgumas teorias da arte) por definir aquilo que se entende por arte: o conceito de enunciação.
Enunciação, define-se nos dicionários de língua portuguesa (e de forma óbvia para este trabalho) como “preposição; (…) tese.”[3]. Deste ponto de vista o próprio conceito de arte passa a ser única e exclusivamente um nome que se atribui a algo – tal como nos diz, na sua entrevista, o criador Rogério Nuno Costa: “aquilo que eu faço, que eu proponho, não é nada que não aconteça já na minha vida de todos os dias, mas apenas e só porque eu digo “Isto é um objecto artístico!” e passa a ser… (…) a arte é um nome…”[4].
Assim, e tendo este facto em conta, aquilo que se entende aqui por produção artística é: não só o facto de se produzir aquilo que será obviamente denominado como artístico – nomeadamente das áreas da pintura, da escultura, ou ainda da literatura (não incluídas neste trabalho), mas também o facto de se produzirem objectos que não serão obviamente artísticos, mas que o são por serem encarados como tal – por quem cria, por quem promove, por quem consome. Estes objectos, de índole artística menos óbvia e de simbolismo mais carregados, provêm exactamente das áreas da performance, da dança, da fotografia/artes plásticas – objectos esses que devem a sua índole artística à enunciação que lhes é atribuída, à carga teórica que carregam no seu conteúdo –; as áreas trabalhadas nesta pesquisa.
Assim, e finalmente, o que se entende aqui por produção artística é a produção – individual ou colectiva – de objectos, resultante de um tipo de pensamento e conhecimento artístico, da aliança entre uma forma, uma estética, e (sobretudo) de um conteúdo teórico, bem como a produção – através, e paralelamente, à produção desses objectos – de estruturas identitárias individuais e/ou colectivas.
Mas se o objecto artístico não difere, nos seus componentes físicos e gestuais, do quotidiano; em que difere ele?
Passemos então ao muitíssimo relevante conceito de mecanismo performance.

[1] Noção teorizada por Ruy Duarte de Carvalho como criatividade diferencial identitária, conceito forjado com base no estudo sobre a reprodução social, e a produção de diferença por rituais mágicos e artísticos.
[2] Os juízos do processo artístico dividem-se em crítica e exaltação; os ângulos dividem-se em individual e colectivo/histórico.
[3] in Dicionário Académico de Língua Portuguesa, Porto Ed., Porto, 1991, p.288.
[4] Para consulta na íntegra, consultar anexos p. XVI.

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Friday, March 21, 2008

...das identidades (take #4) - Conceito-Chave: Tempo

Comecemos então pelo conceito de tempo.
Os dicionários de língua portuguesa são unânimes em defini-lo como “oportunidade; período; época; prazo; (…) ocasião propícia”[1], porem esta definição mais literal deixa escapar uma dimensão muito mais subjectiva e empírica deste conceito – provavelmente a dimensão que torna mais difícil a sua definição. Assim, com base tanto nas teorias sobre memória de Paul Connerton, como nos testemunhos dos artistas entrevistados, torna-se premente a divisão do tempo em dois segmentos que decorrem paralelamente e apresentam estrutura semelhante – anos, horas, minutos, segundos –, mas que do ponto de vista subjectivo e empírico apresentam diferenças aos níveis da medida e da relevância: o tempo geral e o tempo particular[2]. Sendo na realidade o mesmo tempo, mas experimentado de forma diferente, ele divide-se num ponto fulcral: o da intensidade da experiência. Para alem desta constatação, parece importante referir que apesar do tempo particular ser de uma índole muito mais pessoal, parece ser o tempo geral que melhor, e mais, define a experiência: o tempo dos grandes acontecimentos, o tempo mítico.
Esta separação torna-se explicita especialmente em situações de confronto, e do ponto de vista discursivo ela é construída à medida que o é o discurso: torna-se tão importante saber como, como saber quando.
Temos então, um tempo que é dinâmico, mítico, segmentado, altamente subjectivo e empírico, individual em toda a sua generalidade, discursivamente manipulável, e por isso construído culturalmente, possuidor de uma medida/estrutura, relevância e intensidade – sendo que as duas primeiras relevam da ultima enquanto experiência.
Será difícil dizer se esta é realmente uma boa definição do conceito de tempo, ou se é sequer uma definição do conceito de tempo, mas é aquela que servindo o propósito desta pesquisa me parece ser a mais correcta, e apesar de complexa e quase filosófica, uma comum a qualquer individuo e cultura.

Associado ao conceito de tempo, e a este carácter comum, encontramos o conceito de mito. Este conceito é evocado neste trabalho essencialmente a partir da análise de Eduardo Lourenço[3], bem como da análise iconográfica e iconológica de Michele Rocha[4] sobre as obras de António Dacosta, tendo em conta o facto do trabalho se desenvolver à volta do universo de produção artística em Portugal, ou por portugueses.
Essencialmente neste último, a autora refere-se inúmeras vezes a um “tempo mítico destituído da ansiedade e devir” (Rocha, 2005:135). Enquanto que no primeiro caso – Eduardo Lourenço na sua “Mitologia da Saudade” –, se baseia numa espécie de negação de passagem do tempo para definir o encarar da temporalidade da cultura portuguesa.
Assim, e aliando as duas premissas de cada um dos autores, podemos conceptualizar a noção de mito como algo referente a um tempo passado, mas que se encontra também no presente e se projecta no futuro – ruínas, memórias, etc. (itens enunciados por David McDougall como sinais de ausência[5]). (McDougall, 1994:263-264)
Ou seja, o conceito de mito é aquele que serve a negação da passagem do tempo; ou melhor, é ele que – através da sua manipulação por parte dos indivíduos de uma comunidade – será o laço que une o passado ao futuro, passando inevitavelmente pelo tempo presente.
Tal conceptualização parece demasiado genérica, demasiado universal para servir unicamente o universo imagético português. Na realidade é, esta trata-se de uma lei universal já teorizada por outros autores, entre os quais o já referido Paul Connerton; contudo, não é na sua forma mas no seu conteúdo que este laço distingue Portugal de outros países, grupos étnicos, etc.
Michele Rocha dá-nos conta de um sentimento de perda e de uma tentativa de imortalização do indivíduo, de uma força que renega a mudança, o avançar do tempo, através da memória; Eduardo Lourenço fala-nos de saudade, de um sentimento de nostalgia de um tempo passado aliado a uma esperança futura: ora, é então aqui que reside a diferença, nestes elementos constitutivos, nesta preservação do mito pela memória, pelo gesto, pelo hábito, nesta esperança de que tudo volte a ser como dantes, porque a glória já passou, mas é preciso tê-la de volta.
Assim, o mito surge como uma ponte que interliga vários dos aspectos tratados neste trabalho, e a sua relevância surge da sua posição base na construção temporal do povo português.
Como será então transposta esta temporalidade portuguesa para imagens?
Passemos então ao conceito de cultura visual.
[1] in Dicionário Académico de Língua Portuguesa, Porto Ed., Porto, 1991, p.556.
[2] Divisão conceptual forjada com base na entrevista a Patrícia Portela – criadora da área da cenografia e do teatro. Para consulta na íntegra, consultar anexos p. XXIV.
[3] LOURENÇO, Eduardo, “Mitologia da Saudade” in Portugal como destino seguido de Mitologia da saudade, Gradiva, Lisboa, 1999.
[4] ROCHA, Michele, “António Dacosta – À procura de um tempo mítico” in José Fernandes Pereira (dir.), ArteTeoria – Revista do mestrado em Teoria da Arte da F.B.A.U.L., Facsimile Lda., Lisboa, 2005, n.º 6.
[5] Sinais de ausência seriam, segundo David McDougall, uma prova, vestígio ou testemunho silencioso de um passado do qual, ilusoriamente, se aguarda a recuperação. Promove o acto de recordar como algo virtuoso. Num ponto de vista mais complementar do que contrário, é forjado o conceito de sinais de sobrevivência: uma ligação a um imaginário comum por meio de provas válidas e concretas – fotografias, cartas, filmes, etc. Provam a experiência ao invés da existência.

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...das indentidades (take #3)



Conceitos-Chave

Chegados a este ponto parece-me importante definir, desde já, as linhas que orientam – e de que forma – o desenvolver do trabalho: a base conceptual sobre a qual assenta.
Os conceitos de maior importância foram já referidos acima: identidade, produção artística e o tempo. Porém, no decorrer da pesquisa – não só bibliográfica, mas também de terreno –, surgiram outros conceitos que interessam definir para uma melhor compreensão, do trabalho, e de futuras conclusões. São eles os conceitos de: memória colectiva, saudade e artista, associados ao conceito central de identidade; os conceitos de mecanismo performance, ritual, representação e sub-representatividade, e enunciação ligados ao conceito de produção artística; e os conceitos de cultura visual e mito, associados ao conceito de tempo. Porém, alguns destes conceitos satélite apresentam, logo de início, derivações nas ligações estabelecidas; ou seja, esta sistematização serve apenas o propósito da clarificação e da simplificação, de todo é tomada como verdadeira – ela será explicativa, mas só nos poderá levar até certo ponto –; assim, conceitos como os de memória colectiva, saudade ou cultura visual, apresentam ligações com outros conceitos centrais: nomeadamente com os de tempo e de produção artística, respectivamente (fig.2).
Assim, e como o avançar do trabalho, será tecida uma rede conceptual capaz de articular estes pontos fulcrais, a partir de qualquer um deles – uma espécie de espiral conceptual, de um geral para um particular, para outro particular; se assim for necessário.


(fig. 2)

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