Sunday, May 11, 2008

...das identidades (take #21) Gravador nº2: Produção Artística (1ª parte)

A arte é um nome.
Como tal é preciso definir desde inicio sob que critérios, por quem, e de que forma é atribuído este nome a qualquer objecto, nunca esquecendo a inserção do universo em questão – o português – num sistema politico, económico e ideológico.

A arte é uma categoria de conhecimento.
Como tal obedecerá a regras e preceitos, possuirá critérios de consideração, obterá resultados, fará questões.
A arte é um nome. Até aqui nada de novo.

A arte é um nome, sim. O seu mais importante critério de consideração, ou nomeação, será – como o é na História da Arte, a própria história dos acontecimentos artísticos – a enunciação.
Em jeito de manifesto, Rogério Nuno Costa diz: “aquilo que eu faço, que eu proponho, não é nada que não aconteça já na minha vida de todos os dias, mas apenas e só porque eu digo “Isto é um objecto artístico!” e passa a ser…”[1]. Esta frase, já antes referido, é repetida devido á sua importância no contexto deste trabalho.
É importante perceber, e manter presente, que os artistas inquiridos, não revolucionam o mundo, eles aproveitam-no, recortam-no, montam-no de acordo com os seus princípios pessoais e opções artísticas – não necessariamente, ou quase nunca, estéticas – e devolvem-no a quem nele vive, á restante comunidade.
Esta é também a essência deste critério, e conceito, da enunciação: o artista (tal como o historiador da arte define a importância de uma obra tendo como suporte a própria historia dos objectos artísticos) define o que faz como arte tendo como base a importância do objecto criado na sua história – na sua capacidade de romper como tempo habitual e ser considerado como inscrito no seu tempo conceptual.
Deste ponto de vista podemos afirmar, como o induziu a performer indiana Sonia Khurana, que “as obras podem ser menos ‘obras de arte’ do que ‘realizações pessoais’” do artista. (Bousteau, 2007:71)
Ou seja, arte – no contexto deste trabalho – não será aquilo que é considerado como arte pela sociedade, mas essencialmente aquilo que é produzido em processo artístico, e segundo processos artísticos, por um individuo que entende esses mesmos processos e preceitos, os domina, e que entende o resultado dos mesmos como arte: o artista.

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Este passo, apesar de curto, pode ser transformador na maneira de entender, não só o que a seguir será descrito, como também da própria ideia que se tem em sociedade do que é fazer arte – ou produzir sentidos artísticos[2] –, ou do que é o objecto artístico.

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Como já dito acima, a arte – para além de um nome – é uma categoria de conhecimento. Como qualquer tipo de conhecimento, que o é, a arte – de forma mais ou menos consciente – será também uma forma de controlo, de domínio.
Catherine Russel, na sua obra Experimental Ethnography, descreve este controlo, como algo zoológico: um domínio exercido sobre o campo de acção, e sobre o próprio, do outro – o desconhecido, o exótico. Esta concepção de posicionamento de um indivíduo detentor de conhecimento é essencialmente importante no que toca à noção de distância – a noção de que o perto físico se torna distante do ponto de vista intelectual, ou seja, existe uma distância conceptual de segurança, que permite ao individuo a manutenção de um objectividade tão construída como a sua identidade pessoal, social, ou o posicionamento que assume perante determinada realidade. (Russel, 2003:120/121)
Partindo deste ponto, o olhar[3] do indivíduo observador – neste caso específico, o artista – deixará para trás a sua passividade, passando a assumir uma discursividade inerente a qualquer forma de produção de conhecimento.
Voltando ao criador Rogério Nuno Costa, e fazendo das suas palavras minhas, poderia afirmar que: “ (…) toda a arte de uma maneira geral, é exposição de ideias… Exposição no sentido de tornar… (…) Tornar ideias disponíveis… Tu estás a pensar sobre isto, estás a produzir um discurso sobre isto e tornas este discurso disponível e comunica-lo…”[4]. No final seria exactamente neste discurso produzido à volta de determinadas observações que residiria o controlo de que antes se fala – em última análise, na manutenção da já referida distância conceptual de segurança em relação ao objecto observado.
Contudo, no campo da produção artística, este discurso não pretende ser qualquer espécie de domínio: o domínio que é exercido é sobre as realidades observadas, muito mais do que sobre o outro, o outro indivíduo. Até certo ponto, e muitas vezes, o único domínio exercido é apenas sobre si mesmo, sobre a sua realidade – importante é não esquecer que esta realidade, será muitas vezes intersectada por outras realidades, de outros indivíduos, bem como será a mesma realidade de outros indivíduos de uma comunidade; estas justaposições e intersecções serão explicadas parágrafos adiante no contexto das potencialidades de conexão significativa de um objecto artístico.
Deste ponto de vista, a afirmação de Russel sobre a diferença entre o real histórico e o real referencial, torna-se ainda mais válida e pertinente – para a produção de um sentido, ou objecto artístico, o criador utiliza o real histórico, o qual serve de base de trabalho: vivências, experiências, pensamentos, relações, sociabilidade, realidade politica, económica, artística, religiosa, etc. envolvente; para que depois todos estes aspectos da realidade sejam reapresentados a um público sob a forma de um discurso artístico e conhecedor – não só da realidade em si, mas dos efeitos produzidos por ela na existência do artista, ou de outros indivíduos (caso o trabalho seja, ou não, auto-referencial). Acerca desta noção de discursividade da produção artística enquanto forma de conhecimento, resta apenas nomeá-la também – por outro lado – como metadiscursividade, ou seja, não é um discurso escatológico, finito, ou espacialmente restringido: tal como o olhar, este discurso é dinâmico, e decorrente no tempo; uma discursividade que se mantém em actualização, que fomenta a produção de mais discurso em continuidade e em ruptura.

Este discurso, como qualquer objecto artístico, assumirá em resultado uma forma – forma essa que, advindo do conteúdo que se pretende mostrar e uma vez que “ (…) numa era de técnica avançada a ineficácia é pecado contra o Espírito Santo”[5], se pretende não só eficaz no campo da elucidação, como no campo da incisão.
Catherine Russel apresenta, na obra já anteriormente referida, dois formatos de representação teorizados por dois autores da modernidade: a alegoria, de Craig Owen, e a aura, de Walter Benjamin.
Na realidade, e apesar de teorizadas enquanto oposição, estas duas teorias complementam-se mutuamente. Craig Owen apresenta a sua noção de alegoria como a capacidade de salvação, ao esquecimento, de algo que está em vias de extinção – noção que inicialmente seria teorizada para as artes gráficas (cinema e fotografia), passará depois a ser extrapolada para outras formas do fazer artístico. Por outro lado, Walter Benjamin define a aura da obra de arte como uma qualidade perdida da modernidade, uma espécie de espiritualidade que une os diferentes componentes do real que compõem a obra, e lhes oferece coesão.
Como já dito antes, estas duas concepções apresentam-se como contrárias, porém numa análise mais atenta, cedo se percebe o seu grau de complementaridade: se por um lado temos uma visão estrutural da representação da realidade, ligada ao momento da experiência, à visão; temos por outro uma visão que se debruça sobre uma espécie de sacralidade da obra de arte, menos ligada directamente à visão em si, mas mais à intensidade com que essa experiência decorre – ou seja, uma espécie de corpo, e uma espécie de alma. Em suma, o objecto artístico corresponderá então a uma reorganização não aleatória de determinada realidade – mais social, mais individual, mais lírica, mais politica –; ou seja, um arranjo de diferentes alegorias[6] referentes a determinada realidade, possuindo esse arranjo uma linha de pensamento que ligará, de forma coerente e clara, as diferentes alegorias transformando-as num discurso, apesar de estruturalmente heterogéneo, intensamente uno.
É neste ponto que, sem abandonarmos Walter Benjamin, alcançamos a noção de referencialidade. Este termo, apesar de muitas vezes se encontrar em equivalência como o termo representação[7], é apresentado por Benjamin de forma deveras interessante: um processo temporal – passado recente, presente momentâneo, futuro como espelho do passado – que resultaria no que acima se chamou de desejo / saudade.
Deste ponto de vista, pode afirmar-se que a produção artística – em técnica e temática – espelhará um determinado momento histórico. Contudo, a acção artística vai muito além dessa função de espelho: não só reflecte um momento histórico, como o constitui enquanto componente da sua estrutura teórica.


[1] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XVI.
[2] Rogério Nuno Costa. Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XVIII.
[3] Gaze theory: concebida de diversas formas ao longo do início do século por vários autores, entre os quais Walter Benjamin, ou Michel Foucault.
[4] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XVIII.
[5] HUXLEY, Aldous, Admirável Mundo Novo, Livros do Brasil, Lisboa, 1932, p.15.
[6] Mais à frente denominadas, segundo a terminologia forjada por Verónica G. Metello, como representações componentes descentradas.
[7] O termo representação adquire aqui um tom assumidamente depreciativo uma vez que se refere geralmente à substituição directa de um item por um relacionado. Contudo o que se pretende, e como já referido em texto anteriormente, não é uma representação pura, mas antes uma referência: um qualquer ponto de contacto, mais ou menos remoto – mais ou menos óbvio –, entre a realidade que se experiência, e o passado a que se refere.


[Imagem: 'Entalados' de Ramiro Guerreiro (2006)]

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