Thursday, May 15, 2008

...das identidades (take #22) Gravador nº2: Produção Artística (2ª parte)

Em Portugal a vivência da temporalidade, como já antes visto, é característica vincada do povo, mas é vivida de forma muito particular.
Apesar dos diferentes pontos de vista teóricos, ou funcionais, parece existir entre os artistas portugueses uma vontade de exposição de ideias, de mostra de vivências, de mostrar como se vive determinada situação – assumindo uma postura quase etnológica.
Do ponto de vista da criação artística, o processo é algo que está na ordem do dia: a documentação da obra, o relato da obra, etc.
Enquanto momento histórico – e especialmente se tivermos em linha de conta a evolução das técnicas de captação e reprodução de imagens –, este é (há já uns tempos) um momento de reprodução mecânica. Outra vez, nada de novo.
Mas será que nos representamos? Será que nos queremos sequer representar? Enquanto povo? Ou somente enquanto alguém que pertence a um povo, mas que não se quer representar; quer memoriar os seus passos para não se esquecer de como ali chegou, mas sem parar de querer andar para a frente? Pretendemos alegorizar a realidade que nos circunda, assentando-a numa temporalidade retroactiva?
Se Portugal continua a ser considerado, ainda por muitos, um pais artisticamente adiado, poderemos nós falar de características modernas, ou pós modernas na arte contemporânea portuguesa?

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Entre o início do mês de Junho e o início do mês de Setembro do presente ano realizou-se em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, uma exposição – da responsabilidade das comissárias Raquel Henriques da Silva, Ana Filipa Candeias e Ana Ruivo – que versava sobre os últimos 50 anos, do século XX, de produção artística em Portugal[1].
Esta exposição, que albergava autores das mais variadas áreas – pintura, escultura, artes plásticas e performativas –, pretendia na sua organização dar conta, não só das obras produzidas no período sobre o qual se debruçava, como dos processos criativos subjacentes às obras apresentadas. Deste modo – e usando como principais fontes os documentos das instituições Centro de Arte Moderna e Serviço de Belas Artes –, as comissárias desta exposição apresentavam, lado a lado com as obras propriamente ditas, relatórios, esboços, projectos, etc., também eles encarados com o estatuto de obra de arte.
Numa tentativa de ultrapassar a cronologia das obras, as comissárias apostaram numa organização espacial que se prendia por temas, ao invés de uma organização espacial por áreas de acção e/ou sucessão temporal.

Este exemplo específico, apesar de pontual, parece ser altamente exemplificativo da própria produção artística portuguesa, não só nos últimos 50 anos, como também na actualidade: a ultrapassagem da cronologia se tivermos em conta a facção identitária, e a importância do processo se tivermos em conta a facção temporal do objecto artístico.

Também em 2007, é apresentada perante um júri a tese de doutoramento de Verónica Gullander Metello. Este documento revela-se de importância fulcral, uma vez que dissecaria em pormenor o modo de fazer arte – no caso especifico, de índole performativa –, em Portugal nos últimos 50 anos, e a influência de determinados processos na maneira de produzir objectos artísticos na actualidade.

Tal como no exemplo da exposição acima referido, em que as obras são inicialmente descontextualizdadas da sua ordem cronológica – para que esta surja posteriormente em planos secundários e terciários –, para ganharem novos significados a partir dos conteúdos a que se referem e das formas que assumem, também Verónica G. Metello nos dá conta de um processo muitíssimo similar na produção artística portuguesa.
É neste contexto teórico que a autora forja então o conceito de mecanismo performance, ladeado de noções acessórias, mas de importância vital, como: ritual, representação e sub-representatividade.
Estes conceitos, como já descrito acima, referem-se a um modo de manipulação da realidade, a um instrumento de criação, que se resume a uma descentramento de uma parte da realidade, para depois voltar a ser recentrada a partir de uma nova perspectiva – uma perspectiva discursiva. Em suma, o conceito de mecanismo performance refere-se a um potencial substrato sub-representativo performático existente na produção de um objecto artístico. Ou seja, um objecto artístico, no seu processo de produção é composto por diferentes representações componentes descentradas – as já referidas alegorias de Craig Owen –, que depois de ordenadas, ou arranjadas, numa forma – recentradas –, assumem para si um potencial de diferentes conexões com a realidade a partir da qual se formam os mesmos: os objectos artísticos.
Numa visão quase Pollock’iana[2], Verónica G. Metello muda o enfoque do conceito de produção artística dos resultados – objectos artísticos –, para os processos de construção dos mesmos.

Deste ponto de vista, poderia falar-se também de uma aura, como o fez Walter Benjamin – de uma qualquer qualidade da obra de arte que a define como tal, e que a remete para um contexto sem o representar, mas antes referindo-se a ele: a representação, o objecto, seria a forma que a ideia do criador assume, a alegoria; enquanto que a sub-representatividade seria a própria ideia do criador, ou o vestígio da mesma, que subjaz o objecto artístico, e a qual se pretende transmitir. Esta transmissão possuiria características rituais, uma vez que existiria uma formalidade inerente à sua apresentação; contudo não se trataria de um ritual per si, uma vez que não se trataria de uma repetição representativa de um acontecimento ancestral, mas sim de um acontecimento per si referente a um ou mais acontecimentos, ou realidades, ou a uma ou mais porções de um ou vários acontecimentos, ou realidades.

Contudo, e apesar destas possíveis e óbvias pontes entre as teorizações modernistas de Walter Benjamin e Craig Owen e a teoria que circunda a produção artística portuguesa, as noções de alegoria e aura, só são plausíveis ao nível da analogia formal. Na realidade, e em termos de acção do individuo criador, nenhuma destas duas noções teóricas cobre na totalidade a intenção da acção artística portuguesa. Tal afirmação pode ser confirmada sem outra base que não o discurso dos próprios artistas.

Partindo da noção de alegoria podemos afirmar que na presente produção artística portuguesa, o seu propósito não se trata de produzir estruturas de representação que salvem do esquecimento praticas ou rituais antigos, ou tampouco memorias mais remotas da biografia do individuo criador. Por outro lado, também a noção de aura forjada por W. Benjamin parece preencher teoricamente as intenções da produção artística, uma vez que não se procura a composição da realidade através de fragmentos soltos da mesma, ou sequer o processo de produção assume o carácter temporal descrito pelo autor.


[1] 50 Anos de Arte Portuguesa – 6 de Junho a 9 de Setembro de 2007, Fundação Calouste Gulbenkian.
[2] Jackson Pollock: teoriza o gesto enquanto agente estético.
[Imagem: 'Matrioska' de Tiago Guedes (2007)]

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