...das identidades (take #23) Gravador nº2: Produção Artística (3ª parte)
Em confronto com a questão acima referida, o criador Miguel Bonneville afirma: “Acho que não… Acho que não há nenhum limite… Acho que é uma questão de importância… É como se me pedissem para fazer agora qualquer coisa, eu ia obviamente falar sobre aquilo que mais me ocupa o tempo, e a minha vivência neste momento… E depois também acho que as coisas se vão alimentando… Vida, arte, vida, arte, vida…”[1]. Ramiro Guerreiro afirma ao ser inquirido sobre a distância entre o objecto e o seu criador: “ (…) não pode ser completamente distante… Se é uma coisa completamente distante… Não pode ser… É um acto criativo, é uma coisa que vem de ti… (...) Pode haver às vezes referências a espaços, ou vivências minhas, privadas, pessoais”[2]; complementando a afirmação de R. Guerreiro, Patrícia Portela fala de transparência: “Mesmo que tu queiras esconder, está lá sempre… Acho que tudo é um bocadinho transparente… (…) Eu acho que mesmo quando estamos a falar de outra coisa qualquer, estamos sempre a falar… (…) Estamos sempre a falar da mesma coisa, que é aquilo que tu conheces… Não podes sair de ti próprio…”[3].
Ou seja, este aproveitamento – total ou parcial[4] – da realidade vivida num tempo habitual, apesar de um aproveitamento muitas vezes total no que toca ao conteúdo, assumirá sempre uma forma estilizada[5], uma forma conceptual como o tempo a que passa a pertencer. Destas afirmações, especialmente a partir da afirmação da criadora Patrícia Portela, podemos deduzir que efectivamente não existe uma composição da realidade a partir de vários fragmentos, mas antes uma intuição estética de uma realidade particular: a do artista. Ou seja, o que existe não é uma construção total da realidade, mas sim uma espécie de atitude perante o contexto circundante que leva à produção de um discurso sobre o mesmo, e que assume uma forma estética – um descentramento de significação e um posterior recentramento: mecanismo performance. (Metello, 2007:14)
Por outro lado, e tendo em linha de conta o que anteriormente foi dito sobre a temporalidade no capitulo anterior, podemos também afirmar que não existe uma preocupação entre o estabelecimento de uma linha temporal que obedeça aos preceitos de Benjamin – passado recente, presente momentâneo, futuro como espelho do passado. Efectivamente não parece existir qualquer tipo de preocupação no estabelecimento de uma linha cronológica que date, ou inscreva, o objecto artístico; parece sim existir um decorrer processual no tempo, mas que não é específico, ou limitado. Como já antes afirmado: o passado torna-se presente, o presente passado, o passado futuro, etc. Mas mais importante parece-me ser o facto de, mesmo quando é mantida a linearidade da cronologia, o futuro não se apresentar como um espelho do passado, mas antes como a própria obra de arte: assumindo esse passado como ponto de partida, mas criando um futuro que se apresenta novo e original.
Quando inquirido sobre as dimensões identitárias do seu trabalho, sobre os limites de transposição do privado para o público através da construção de um objecto artístico – e vice-versa, ou seja, até que ponto o objecto pode também ser elemento constitutivo da identidade do artista –, o criador Rogério Nuno Costa, cujo trabalho possui dimensões temporais vincadas e utiliza a noção de eu como instrumento de trabalho, afirmou: “Não sei, não sei do que é que estás a falar… Mas parece doloroso… Doloroso, no sentido artístico…”[6]. Esta afirmação vai de encontro ao que acima se pretendia explanar; ou seja, enquanto ideia de processo temporal, a noção de aura forjada por Benjamin não parece ser suficiente para a definição da produção artística portuguesa uma vez que, mesmo quando é mantida uma linearidade cronológica, esse processo não se apresenta como um ciclo fechado, mas sim como um ciclo de espirais: uma espécie de progresso doloroso[7], ligado ao que já foi e ansiando pelo potencial do que está por vir – em última análise: a produção artística portuguesa reflectirá não o passado que a sustenta, mas antes o constante devir da temporalidade portuguesa, em geral, e do processo artístico performático, em particular.
Por outro lado, também a noção de alegoria, enquanto estrutura de representação e capacidade de salvação do esquecimento, de Owen parece ser incompleta – quando não contraditória – para uma definição da produção artística portuguesa contemporânea.
Enquanto estrutura de representação, a alegoria Owen’iana falha quando aplicada à produção portuguesa contemporânea na medida em que esta – produção artística – não possui no seu processo uma preocupação inicial no que toca à representação de uma realidade, ou de um universo. Tal facto prende-se essencialmente com a ideia de ficção.
Miguel Bonneville afirma: “Há um montes de protecções que eu tenho, que nem fui eu que as criei… O facto de eu estar a apresentar uma coisa e estar a dizer: “Sim, sim, eu ontem fui à praia e o meu avô estava nu atrás de mim!”… As pessoas podem achar que é mentira, podem achar que é verdade… Eu tenho esse lado sempre… Que nem sou eu que crio; eu posso estar a dizer a mais pura das verdades e ninguém acreditar em mim porque é um espectáculo, porque é arte…”[8], bem como Tiago Guedes, que declara: “ (…) tudo o que tu apresentes no palco é outra coisa, é outro nível: é ficção… Por mais autobiográfico que tu sejas, por mais agarrado à tua vida pessoal… Ou seja, isso é o que te pode fazer encontrar matéria, mas depois quando tu apresentas num palco, quando as pessoas vêm, tu estás num espaço que é um espaço de ficção…”[9]. Ou seja, tal como a questão dos limites de transposição, também a representação é algo que é inerente à forma que o objecto assume – assume uma forma representativa resultante da articulação de um conteúdo, técnicas de criação artística e de uma tratamento performático desse mesmo conteúdo; contudo, esse conteúdo do qual se parte não possui, à partida, uma limitação conceptual, espacial ou temporal – ele possui estas características por contingência, não por opção do criador.
Por outro lado, e especialmente se for tido em linha de conta o que anteriormente foi dito acerca do modo de encarar a temporalidade, também a vertente de capacidade de salvação do esquecimento é igualmente incongruente com a definição que se pretende para a produção artística portuguesa contemporânea. De acordo com as respostas atribuídas às questões sobre a passagem do tempo podemos deduzir que, tal como os factores acima referidos, também o esquecimento parece não fazer parte das preocupações dos artistas inquiridos.
Na realidade, o que parece ser facto – associando também a ideia de progresso doloroso – é que o que a produção de objectos promove, não será tanto o salvamento do esquecimento daquilo que se vai perder, mas sim uma espécie de esquecimento simbólico, ou seja, nas suas peças artísticas o que parece acontecer, não é a representação de uma realidade passada para que esta seja preservada, mas antes uma ritualização dessa realidade passada para que esta possa ser transposta, e passe a existir uma passagem para uma nova realidade – ainda que se baseie na anterior –, mantendo assim um constante devir, um progresso doloroso.
[1] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XII.
[2] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXV.
[3] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXXIII.
[4] O binómio torna-se irrelevante a partir do momento em que é abandonado o conceito de limite aplicado às noções de público e privado.
[5] Forma essa que será gerada a partir do conteúdo que se pretende comunicar.
[6] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XVII.
[7] Tony Kushner, Angels In America, theater script, 2004.
[8] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XII.
[9] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. V.
[Imagem: 'Miguel Bonneville #2' de Miguel Bonneville (2007)]
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