Tuesday, May 20, 2008

...das identidades (take #23) Gravador nº2: Produção Artística (3ª parte)

Uma das questões colocadas aos criadores durante as entrevistas prendia-se com a existência de um limite para o que é possível de performatizar para um objecto artístico. Curiosamente – e especialmente se tivermos em linha de conta as noções desenvolvidas pelos dois autores – nenhum dos cinco artistas respondeu afirmativamente a esta questão. Mesmo em situações em que são feitas ressalvas acerca da passagem de todos os acontecimentos inscritos num tempo habitual para um tempo conceptual, não são feitas com base num limite entre o público e privado, mas antes numa gradação de níveis de importância atribuídos a esses mesmos acontecimentos, que após o devido tratamento, comporão o objecto artístico que a eles se referirá. Por outro lado, também a cronologia é altamente manipulada: porções de realidade pertencentes a tempos passados passam a ser encarados como presentes, ou futuros próximos; assim como passados remotos passam a ser encarados como futuros próximos, ou passados bastante recentes são relegados para planos de lonjura que não lhes correspondem.

Em confronto com a questão acima referida, o criador Miguel Bonneville afirma: “Acho que não… Acho que não há nenhum limite… Acho que é uma questão de importância… É como se me pedissem para fazer agora qualquer coisa, eu ia obviamente falar sobre aquilo que mais me ocupa o tempo, e a minha vivência neste momento… E depois também acho que as coisas se vão alimentando… Vida, arte, vida, arte, vida…”[1]. Ramiro Guerreiro afirma ao ser inquirido sobre a distância entre o objecto e o seu criador: “ (…) não pode ser completamente distante… Se é uma coisa completamente distante… Não pode ser… É um acto criativo, é uma coisa que vem de ti… (...) Pode haver às vezes referências a espaços, ou vivências minhas, privadas, pessoais”[2]; complementando a afirmação de R. Guerreiro, Patrícia Portela fala de transparência: “Mesmo que tu queiras esconder, está lá sempre… Acho que tudo é um bocadinho transparente… (…) Eu acho que mesmo quando estamos a falar de outra coisa qualquer, estamos sempre a falar… (…) Estamos sempre a falar da mesma coisa, que é aquilo que tu conheces… Não podes sair de ti próprio…”[3].
Ou seja, este aproveitamento – total ou parcial[4] – da realidade vivida num tempo habitual, apesar de um aproveitamento muitas vezes total no que toca ao conteúdo, assumirá sempre uma forma estilizada[5], uma forma conceptual como o tempo a que passa a pertencer. Destas afirmações, especialmente a partir da afirmação da criadora Patrícia Portela, podemos deduzir que efectivamente não existe uma composição da realidade a partir de vários fragmentos, mas antes uma intuição estética de uma realidade particular: a do artista. Ou seja, o que existe não é uma construção total da realidade, mas sim uma espécie de atitude perante o contexto circundante que leva à produção de um discurso sobre o mesmo, e que assume uma forma estética – um descentramento de significação e um posterior recentramento: mecanismo performance. (Metello, 2007:14)
Por outro lado, e tendo em linha de conta o que anteriormente foi dito sobre a temporalidade no capitulo anterior, podemos também afirmar que não existe uma preocupação entre o estabelecimento de uma linha temporal que obedeça aos preceitos de Benjamin – passado recente, presente momentâneo, futuro como espelho do passado. Efectivamente não parece existir qualquer tipo de preocupação no estabelecimento de uma linha cronológica que date, ou inscreva, o objecto artístico; parece sim existir um decorrer processual no tempo, mas que não é específico, ou limitado. Como já antes afirmado: o passado torna-se presente, o presente passado, o passado futuro, etc. Mas mais importante parece-me ser o facto de, mesmo quando é mantida a linearidade da cronologia, o futuro não se apresentar como um espelho do passado, mas antes como a própria obra de arte: assumindo esse passado como ponto de partida, mas criando um futuro que se apresenta novo e original.
Quando inquirido sobre as dimensões identitárias do seu trabalho, sobre os limites de transposição do privado para o público através da construção de um objecto artístico – e vice-versa, ou seja, até que ponto o objecto pode também ser elemento constitutivo da identidade do artista –, o criador Rogério Nuno Costa, cujo trabalho possui dimensões temporais vincadas e utiliza a noção de eu como instrumento de trabalho, afirmou: “Não sei, não sei do que é que estás a falar… Mas parece doloroso… Doloroso, no sentido artístico…”[6]. Esta afirmação vai de encontro ao que acima se pretendia explanar; ou seja, enquanto ideia de processo temporal, a noção de aura forjada por Benjamin não parece ser suficiente para a definição da produção artística portuguesa uma vez que, mesmo quando é mantida uma linearidade cronológica, esse processo não se apresenta como um ciclo fechado, mas sim como um ciclo de espirais: uma espécie de progresso doloroso[7], ligado ao que já foi e ansiando pelo potencial do que está por vir – em última análise: a produção artística portuguesa reflectirá não o passado que a sustenta, mas antes o constante devir da temporalidade portuguesa, em geral, e do processo artístico performático, em particular.

Por outro lado, também a noção de alegoria, enquanto estrutura de representação e capacidade de salvação do esquecimento, de Owen parece ser incompleta – quando não contraditória – para uma definição da produção artística portuguesa contemporânea.
Enquanto estrutura de representação, a alegoria Owen’iana falha quando aplicada à produção portuguesa contemporânea na medida em que esta – produção artística – não possui no seu processo uma preocupação inicial no que toca à representação de uma realidade, ou de um universo. Tal facto prende-se essencialmente com a ideia de ficção.
Miguel Bonneville afirma: “Há um montes de protecções que eu tenho, que nem fui eu que as criei… O facto de eu estar a apresentar uma coisa e estar a dizer: “Sim, sim, eu ontem fui à praia e o meu avô estava nu atrás de mim!”… As pessoas podem achar que é mentira, podem achar que é verdade… Eu tenho esse lado sempre… Que nem sou eu que crio; eu posso estar a dizer a mais pura das verdades e ninguém acreditar em mim porque é um espectáculo, porque é arte…”[8], bem como Tiago Guedes, que declara: “ (…) tudo o que tu apresentes no palco é outra coisa, é outro nível: é ficção… Por mais autobiográfico que tu sejas, por mais agarrado à tua vida pessoal… Ou seja, isso é o que te pode fazer encontrar matéria, mas depois quando tu apresentas num palco, quando as pessoas vêm, tu estás num espaço que é um espaço de ficção…”[9]. Ou seja, tal como a questão dos limites de transposição, também a representação é algo que é inerente à forma que o objecto assume – assume uma forma representativa resultante da articulação de um conteúdo, técnicas de criação artística e de uma tratamento performático desse mesmo conteúdo; contudo, esse conteúdo do qual se parte não possui, à partida, uma limitação conceptual, espacial ou temporal – ele possui estas características por contingência, não por opção do criador.
Por outro lado, e especialmente se for tido em linha de conta o que anteriormente foi dito acerca do modo de encarar a temporalidade, também a vertente de capacidade de salvação do esquecimento é igualmente incongruente com a definição que se pretende para a produção artística portuguesa contemporânea. De acordo com as respostas atribuídas às questões sobre a passagem do tempo podemos deduzir que, tal como os factores acima referidos, também o esquecimento parece não fazer parte das preocupações dos artistas inquiridos.
Na realidade, o que parece ser facto – associando também a ideia de progresso doloroso – é que o que a produção de objectos promove, não será tanto o salvamento do esquecimento daquilo que se vai perder, mas sim uma espécie de esquecimento simbólico, ou seja, nas suas peças artísticas o que parece acontecer, não é a representação de uma realidade passada para que esta seja preservada, mas antes uma ritualização dessa realidade passada para que esta possa ser transposta, e passe a existir uma passagem para uma nova realidade – ainda que se baseie na anterior –, mantendo assim um constante devir, um progresso doloroso.

[1] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XII.
[2] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXV.
[3] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXXIII.
[4] O binómio torna-se irrelevante a partir do momento em que é abandonado o conceito de limite aplicado às noções de público e privado.
[5] Forma essa que será gerada a partir do conteúdo que se pretende comunicar.
[6] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XVII.
[7] Tony Kushner, Angels In America, theater script, 2004.
[8] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XII.
[9] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. V.


[Imagem: 'Miguel Bonneville #2' de Miguel Bonneville (2007)]


Labels: , , ,

0 Comments:

Post a Comment

<< Home