Tuesday, June 03, 2008

...das identidades (take #27) Gravador nº3: Identidade (3ª parte)

Em última análise e de todas estas construções, as que mais interessam no âmbito deste estudo, serão as de Paul Connerton e de Eduardo Lourenço – uma pela definição da ligação entre os indivíduos de uma comunidade mais ou menos alargada, e outra pela definição da identidade que aqui se pretende trabalhar, respectivamente.
Ainda assim, e ainda que assumindo posições acessórias, as restantes construções conceptuais à volta da identidade são valiosas pelo seu imbricamento com as acima referidas, bem como por contributos alternativos às mesmas.

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O eu é sempre imaginado. (Firth, 1996:109)
Esta é a ideia primordial de Simon Firth acerca da construção identitária, e da noção de ideal associada a essa construção. Tal noção advém essencialmente do facto, já antes referido, da construção identitária ser eminentemente narrativa – narrativa essa que será cultural apenas por contingência, uma vez que assenta num anti-essencialismo cultural; ou seja, o pessoal é cultural, mas a narrativa identitária do indivíduo não é sempre sujeita a determinantes sociais.
Contudo, e ainda que por mera contingência, será sempre numa base cultural que a estrutura identitária do individuo irá assentar, e como tal essa contingência não deve ser descurada de análise. Será também sobre ela que assentará a identidade da comunidade a que pertence o indivíduo.
O que torna este facto, um de tão elevado grau de importância, é essencialmente o seu carácter temporal – é o facto de existir um decorrer dessa mesma narrativa identitária. Por outro lado temos também, introduzida neste campo por Firth, a noção de experiência que servirá o propósito de filtrar, de todos os acontecimentos, aqueles que se inscreverão na narrativa identitária do indivíduo, e/ou da comunidade.
Este aspecto torna-se de importância premente, essencialmente, se tivermos em conta que o autor Paul Connerton utiliza as mesmas premissas para definir as estruturas da memória, tanto num plano individual, como colectivo.
Na realidade, estas duas estruturas não parecem ser análogas, mas antes concomitantes e sincrónicas no seu decorrer.

Na sua teorização sobre as estruturas de memória colectiva, tal como os outros autores acerca da identidade, Paul Connerton dá conta dos aspectos narrativos e performáticos do seu processo construtivo. Para o efeito o autor desenvolve uma série de categorizações e tipologias acerca dos diferentes mecanismos de produção de uma memória colectiva – baseada, e base, da individual. Tais categorias apresentam-se sob os binómios: memória/habit-memory e práticas incorporadoras/práticas de registo, sendo que este último resultaria do primeiro. Ao nível das tipologias, Paul Connerton desenvolve uma tríade de géneros de memória: memória pessoal, memória cognitiva e habit-memory (ou capacidade de reprodução performática). Para um melhor entendimento da sua aplicação à produção artística e identitária, explicarei sumariamente o funcionamento destes mecanismos.

O conceito de memória pessoal é de apreensão óbvia: tratam-se das memórias produzidas durante a existência do indivíduo; são de carácter localizado e promovem uma maior consciência do estado presente, uma ideia de causalidade entre o passado e o presente. Por outro lado, a noção de memória cognitiva, apesar de ligada a um passado não o refere no seu funcionamento – ela relega o seu funcionamento unicamente para a experiência de aprendizagem do movimento, técnica, convenção, etc. No extremo oposto à memória pessoal, encontrar-se-ia então a noção de habit-memory, definida pelo autor como um tipo de memória sem qualquer tipo de relação com o passado, uma vez que é reproduzida presentemente sem qualquer tipo de referência ao episódio de aprendizagem dessa convenção, técnica ou movimento – uma reprodução performática, um hábito. Esta tríade tipológica daria origem aos binómios acima apresentados, dependendo unicamente do tipo de performatização escolhida, ou pedida, pelo/ao indivíduo.

O primeiro binómio – memória/habit-memory – caracteriza-se pela oposição entre o que é único no tempo e o que é reprodutível mecanicamente. Assim temos uma habit-memory caracterizada pela sua mecanicidade, a sua ausência de reflexão por parte do indivíduo na sua performance, pela sua reprodução enquanto hábito; enquanto que, por outro lado, a memória seria caracterizada pela sua especificidade temporal e espacial, pela sua irreprodutibilidade, e também, ao contrário da habit-memory que incorpora o acto de recordar como sistemático, por uma ideia de verdade associada a esta memória – ou seja, não é acreditar que a sua memória (a do individuo) seja mais verdadeira que as dos restantes; mas, por ser impossível de reproduzir, a sua inscrição no passado é inalterável e por isso verdadeiramente memorável.
Quanto ao segundo binómio – prática incorporadora/prática de registo –, o autor, define-o como aspecto performático do primeiro. Ou seja, por práticas incorporadoras entendem-se as que sejam convencionais, e que se sustêm no tempo unicamente durante o momento da sua ocorrência; enquanto que por práticas de registo se entendem aquelas se sustêm no tempo muito depois da sua ocorrência e que, ao contrário das primeiras, possuem critérios de consciência, género e número.

Segundo Connerton, estes são passos de evolução na memória social de uma comunidade: a interpretação da realidade passa da oralidade à escrita. Contudo, é inevitável que este tipo de evolução torna a memória social de uma comunidade em algo estagnado e hermético.
Assim, e sem improvisação possível, procuram-se novas formas de expressão da memória – passa-se da improvisação para uma inovação fundamentada, para uma dinâmica de actualização das narrativas de memória.

Do ponto de vista artístico, estas noções tornam-se deveras importantes principalmente se tivermos em conta o que anteriormente foi dito acerca dos meios de produção serem (entre outras coisas) um reflexo da sociedade em que são utilizados. Deste modo, esta segunda evolução – a passagem para uma dinâmica de actualização das formas de expressão de uma memória – é eminentemente criativa, e actualmente suportada pelos meios áudio e vídeo. Foi essencialmente nos sons e nas imagens que foi depositada a responsabilidade de registo das memórias de um indivíduo, ou de uma comunidade; e é o seu carácter tecnológico que confere, posteriormente, às memórias o seu carácter dinâmico, e às formas que assumem o seu carácter actual.
Por outro lado, e ainda no campo artístico, desenvolve-se uma outra maneira de expressar memórias partindo exactamente desse pressuposto de prática de registo teorizado por Connerton. Partindo de uma base ritualista, é então desenvolvido um género de registo único na sua ocorrência, e que se sustém no tempo para alem dela: a performance e o happening.[1] Estes dois géneros, apesar de únicos no tempo (embora enumeradas vezes sejam documentados com a utilização dos meios acima referidos), revelam-se como uma prática de registo e como promotores de uma dinâmica de actualização, uma vez que não têm a pretensão de expressar uma qualquer memória através da sua reprodução, mas antes através da ideia de verdade acima referida: ou seja, a memória não é reproduzida, ela é intuída esteticamente pelo indivíduo e apresentada sob uma forma igualmente estética, tornando-se numa nova memória inscrita no tempo, ao invés de uma reprodução de memórias anteriores – um apoderamento e manipulação (dinâmica) da realidade passada, para a transformar em algo que é novidade (actualização) e verdadeiro.

Igualmente importante é perceber que estas estruturas e processos que regem a memória, tal como acima descrito, são absolutamente os mesmo que regem a construção identitária.
Tal como a memória, também a identidade assume a forma de uma narrativa, de um discurso que decorre no tempo, e para a qual são escolhidos momentos específicos e únicos da existência do indivíduo, ou da comunidade. A partilha processual estende-se também ao campo dos resultados: também o conceito de identidade pressupõe que haja uma dinâmica de actualização da narrativa identitária, e igualmente pelos meios áudio e vídeo, bem como pela modalidade performática, que existem no caso da memória. Ou seja, também a identidade se baseia, e reflecte, no que acontece no ambiente circundante ao indivíduo, ou à comunidade onde este se insere.
Deste modo, é possível afirmar que estes dois processos não são equivalentes ou concomitantes. Eles são um único processo que a partir de certo ponto se ramifica – uma espécie de rizoma.
O que temos então é um processo que como resultado apresenta uma memória e uma identidade: uma história e uma atitude, ambas profundamente ligadas tanto a um plano real como a um plano imaginário – objecto e desejo. Uma história que baseia a atitude, e uma atitude que espelha a história. Outro aspecto interessante deste processo é a sua dialéctica, a sincronia dos dois rizomas: ambos se actualizam constantemente e simultaneamente; cada atitude passa a ser história para novas atitudes, e a história é sempre evocada quando é necessário fundamentar ou validar uma atitude. Resta referir que esta estrutura em rizoma se poderá aplicar, tanto num plano individual, como colectivo – comunitário, social ou nacional.

[1] Estes dois tipos de registo são de índole performativa, sobretudo no que toca à forma. Contudo diferem no seu conteúdo: a noção de performance remete para um campo de significação mais pessoal, e mais discursivo; enquanto que, por outro lado, o happening remete essencialmente o espectador para a experiência estética.


[Imagem: 'Trio' de Tiago Guedes (2005)]

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