Thursday, June 05, 2008

...das identidades (take #28) Gravador nº3: Identidade (4ª parte)

“ (…) Última encenação de todo o nosso ser para aliviar o luto das nossas esperanças desfeitas.” (Lourenço, 1999:98)

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Também no caso português se aplicam estas premissas acima enunciadas. Contudo, e uma vez que a vivência da memória é algo de muito peculiar no caso português, também a identidade terá ressalvas quanto à universalidade dos anteriores pressupostos.
Paul Connerton, falando da sua ideia de memória colectiva, afirmava que também o acto de recordar se podia tornar um hábito – o conteúdo temático, ou factual, continuaria no campo da memória, porém na sua forma essa recordação passaria a fazer parte do campo da habit-memory. Ou seja, o acto de recordar uma memória tornar-se-ia um hábito, uma muleta para a validação de uma atitude recorrente, por exemplo.
Contudo, a identidade portuguesa, como descrita por Eduardo Lourenço, é de carácter mitológico e altamente manipulada ao nível do tempo.
Como já antes visto, esta manipulação não é exclusiva do ser português, é sim exclusivo facto de esta ser praticamente acronológica – tal como os modos de produção artística referidos no capitulo anterior, também as memorias possuem um campo de significação sem circunscrição, e um potencial de conecções praticamente ilimitado.
Assim, no caso da identidade portuguesa, não é tanto o facto de recordar se tornar um hábito, mas antes o próprio teor das memórias que recorrentemente são referidas por hábito. Já foi anteriormente referido que a produção artística portuguesa assenta num mecanismo performance que transporta aspectos quotidianos, de um tempo habitual, para um campo que pressupõe a ruptura com esse mesmo quotidiano, um tempo conceptual. Tal mecanismo aplica-se também à memória portuguesa: cada episódio é transformado numa ode. Deste modo, o hábito de recordar transforma-se num hábito de mitificar: se todas as memórias são importantes, se tudo o que é possível transpor para um universo conceptual o é, e todo o resto é simbólica e conceptualmente esquecido, então todas as recordações serão importantes, todo o que é feito é história e, como tal, o habito de recordar terá como conteúdo apenas recordações de pesado valor emocional e social. Cada história transforma-se num mito.

Eduardo Lourenço define o conceito de saudade, não só como um sentimento que sintetiza na sua enunciação a manipulação do tempo e das memórias, e as noções de melancolia, nostalgia e esperança, mas também como um termo que a cultura portuguesa renunciou a definição, essencialmente porque a saudade deixa de ser um hábito para se tornar numa espécie de entidade.
Como já possivelmente antes adivinhado, este conceito não nos serve, e é substituído pelo de progresso doloroso. Tal facto prende-se essencialmente com uma das premissas base de Connerton para a existência de uma memória colectiva: a existência de uma mitologia fundadora, que tenha em linha de conta as noções sociais como: geração, tempo, estrato social, género, etc. Deste ponto de vista, é-nos possível abandonar o conceito de saudade – ainda que este seja valido na sua definição – uma vez que, na prática, este conceito é contraditório ao nível de uma memória ou identidade colectivas: nossa mitologia fundadora remonta ao Sebastianismo e, por vezes, ao início da Cristandade.
Se a saudade é a memória e consciência da temporalidade carnal, o mito Sebastianino será a memória colectiva de um passado presente, melhor, anterior a uma queda moral. (Lourenço, 1999:140/141)
Ter este facto em linha de conta, é de sobeja importância uma vez que será ele a causa da existência, ou destruição, da ideia de que se encontram edificadas uma memória e uma identidade portuguesas. É neste ponto que assentará então a noção de progresso doloroso – a memória que subjaz a identidade portuguesa começa a ser demasiado antiga para a suportar, e demasiado folklorizada, e o que começa a definir a identidade portuguesa é muito mais essa mesma dor que advém do avanço, e consequentemente de um maior afastamento e questionamento da memória fundadora, do que a própria memória.


[Imagem: 'Miguel Bonneville #1' de Miguel Bonneville (2006)]

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