Friday, June 06, 2008

...das identidades (take #29) Gravador nº3: Identidade (5ª parte)

No campo da produção artística, estes factos, premissas e pressupostos, são plenamente delineados pelos criadores que colaboraram neste trabalho, não só através de uma posterior análise do seu discurso, mas especialmente no discurso em si – num discurso que se entende sem entrelinhas, sem qualquer pressuposto psicanalítico ou interpretativo; não há espaço para interpretação, ele é um discurso dogmático.

Como já antes referido no primeiro capítulo – e seguindo os primeiros pressupostos de Duarte de Carvalho –, no que toca ao tempo de criação da identidade pessoal, a maioria dos criadores não mostrou renitência alguma em apontar os seus primeiros anos da infância, e da adolescência, como memórias fortes e altamente fundadoras de uma identidade mais que pessoal: adulta e profissional. Obviamente, tal facto poderá prender-se com o facto de a amostra de criadores se constituir como uma geração e que, como tal, essa geração (que representam) se manifeste através de memórias de infância – facto que, a ser corroborado, seria imediatamente identificado como o mesmo mecanismo que rege o sentimento de saudade. Contudo, essa relação não é óbvia. A existência deste grupo enquanto representativos de uma geração de criadores é real, porém a sua distância à memória ancestral evocada é de tal ordem que não deveria ser determinante na sua forma de produzir objectos artísticos, construir uma identidade, ou construir uma memória.
Na realidade, esta lonjura temporal que interrompe a identificação através de um mito ancestral promove, a par de um progresso doloroso, uma espécie de saudosismo sincrético. Ou seja, um sentimento indefinido no seu conteúdo, mas que na sua forma e mecanismos muito se assemelha ao sentimento de saudade, uma vez que promove a manipulação de um tempo conceptual – e como tal, imagético – para anular o tempo presente, chorar o passado, e esperar um futuro mais luminoso.
A forma que os objectos artísticos assumem não é independente do seu conteúdo, é sim ditada por ele – já antes foi dito. Porém o mecanismo de produção dos mesmos, mecanismo performance, parece ser também comum à actual construção da memória portuguesa, e por conseguinte da sua identidade. Também na construção de memórias, e de identidades, se vêem múltiplos descentramentos e recentramentos a compor a sua estrutura – cada memória é possuidora de um potencial de conecções, assim como a estrutura identitária o é, assim como o objecto artístico o é.
Produzir artisticamente é construir identitariamente. (Firth, 1996:109).

Tal como já antes referido, as questões levantadas aos cinco criadores acerca do sentimento de saudade foram respondidas igualitariamente entre o ‘sim’ e o ‘não’, trazendo atrás as respectivas justificações. Também já referida, é a linearidade de todas as justificações. Independentemente da resposta inicial, todas as justificações que a procederam revelam algum grau de sincretismo com a noção de saudade. Contudo dividindo-se em vertentes objectiva e emocional entre o passado e o futuro, respectivamente. Ou seja, o passado é encarado com objectividade, como algo para onde não se pode voltar e que já se transformou noutra coisa – em memória ou ruína –, enquanto que o futuro assume agora o papel de maior enfoque emocional. Passou a existir realmente uma esperança à volta de um futuro, que por ser incerto, se pode esperar melhor, novo e inspirador.

Já no que toca à existência de uma memória e identidade colectivas portuguesas, ao contrário da aceitação de algo que se possa entender como saudade – ou forma comum de encarar o passar do tempo, ou o final da existência física –, as respostas, apesar de não serem unânimes, são unânimes na negatividade que carregam.
Mesmo respondendo afirmativamente acerca da existência de uma identidade colectiva, ou movimento artístico que abarcasse uma quantidade razoável de criadores, os artistas não puderam deixar de frisar que a sua existência se baseava em processos que actualmente não fazem sentido, em mitologias moribundas, ou finalmente na dor que advém de um progresso que não é desejado, ou encarado com ligeireza.
Exemplificativos são os discursos de Rogério Nuno Costa, Patrícia Portela e Miguel Bonneville. Quando questionado sobre uma memória e identidade colectiva artística portuguesa, R. N. Costa, afirma: “Eu acho que existe, mas a um nível mau… Que é… Por exemplo, existe em Portugal uma coisa que apelido de “pânico da realidade” que é… que vai bater naquilo que eu te estava a dizer há bocado… Nós realmente queremos ser encantados, porque achamos que realmente que aquilo que nos é dado a ver por produções mais mediáticas, como é o caso da televisão, não é suficientemente encantatório… E temos um pânico atroz da nossa realidade, da nossa própria realidade, e de sermos confrontados com ela… Eu acho que isso é um mal…”[1]; que é o mesmo que dizer que os mecanismos de fuga à realidade não servem a produção artística, e como tal não deveriam servir a memória e identidade portuguesas – ou seja, o que é aqui criticado não é o uso ou manipulação da realidade para a produção de objectos artísticos, é sim que estes escondam, ou abulam, as influencias exercidas por essa realidade no objecto que é produzido. Por outro lado, mas ainda na mesma calha critica, temos a criadora Patrícia Portela que nomeia a antiguidade como fio condutor da memória e identidade portuguesas, quando questionada acerca do mesmo assunto: “Existe, mas é muito antiga, muito antiga... Eu acho que nós continuamos à espera de refazer o império… Secretamente… Mas pronto, sem querer abusar muito, eu refaria essa tua descrição de memória colectiva, e diria… “Para termos uma grande memória colectiva, é preciso que alguém escreva qualquer coisa primeiro!”, ou seja, é preciso que alguém diga qualquer coisa que depois sirva para toda a gente citar… Aliás, quem escreveu as primeiras histórias, viu isto tudo, e nós continuamos a escrever as mesmas histórias derivadas dessas… E acho que sim, que temos uma memória colectiva… Aliás, é muito… Pode ser muito forte, pode ser muito castradora, ou não…”[2], o que nos faz voltar à questão da grande, e inevitavelmente crescente, distância entre o momento presente e o momento instaurador da memória e identidade colectivas. Finalmente, o criador Miguel Bonneville, apesar da negatividade aliada à sua resposta, é o único criador que parece querer nomear e tornar real esta nova coisa que nos torna nós: “Acho que o sentimento é comum, em Portugal… É sempre uma coisa muito dura de se fazer, tem 1000 problemas… Essas coisas todas acabam por passar para aquilo que tu fazes e nem sempre é bom… Fazer parte do processo de trabalho, estares sempre a levar com chapadas na cara… Acaba por trazer uma agressividade para os trabalhos, que se calhar não precisavam de ter… e têm porque acontece aqui… E que se calhar são essa coisa assim, meia agressiva, meia… Tens mesmo de fazer, tens de ultrapassar estas coisas todas, é muito difícil chegares ao fim e deitares isso fora… Acho que é isso que eu encontro em comum… É assim um bocado essa carga…”[3]; ou seja, essa dor de que acima se falava, esse progresso doloroso que nos é imposto, parece ser actualmente a melhor definição de algo – o que quer que seja – que nos defina enquanto pais produtor de sentidos artísticos.

Estes três discursos são referidos pela profusão e pontaria certeira. Contudo, também os criadores Tiago Guedes e Ramiro Guerreiro referem aspectos interessantes da actual produção artística portuguesa e da sua respectiva identidade. Ambos os criadores são peremptórios em afirmar que o contexto social e politico que nos circunda na actualidade não é favorável à formação de um qualquer grupo de criadores que possa ser definido por uma identidade, assim como em afirmar que se assiste hoje a um veloz e crescente processo de homogeneização dos formatos artísticos criados.Por outro lado, Tiago Guedes refere também no seu discurso o olhar exterior de índole tropicalista: “As pessoas interessam-se no sentido de terem uma espécie de… Isto parece ridículo, mas mesmo assim tem uma espécie de olhar quase tropicalista do que se faz em Portugal… Do género: “o que é que eles, lá do canto, estão a fazer?” Algumas pessoas ainda é assim… Porque Portugal, para muita gente ainda na Europa, é um país completamente periférico…”[4]. O que nos remete de volta para Ruy Duarte de Carvalho, Paul Connerton e Eduardo Lourenço: não é possível definir uma identidade – neste caso a portuguesa – sem uma feroz oposição em relação a outras.

[1] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXII.
[2] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XXXVI.
[3] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. XV.
[4] Para consulta da entrevista na íntegra, consultar anexos p. VI.

[Imagem: 'Vou A Tua Casa - Lado A' de Rogério Nuno Costa (2004)]

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